Carmen
Uma melodia, mais do que uma sequência de notas, pode ser uma ponte para lembranças antigas. Sempre que os acordes de Bizet preenchem o ambiente, um nome vem-me à memória com tal clareza que rivaliza com a própria música.
Assista à interpretação de um trecho da Carmen de Bizet
Sentado ao volante do carro azul metalizado, que brilhava ao sol como uma pedra lapidada, era impossível eu não me deixar envolver pelo cheiro dos estofos novos e dos componentes recém-montados. Experimentava uma verdadeira injeção de energia, uma promessa de descoberta. Ao meu lado, a copiloto expressava-se em castelhano com uma voz tão suave e melodiosa quanto a de uma cantora lírica, e simultaneamente assertiva, traçando o caminho com a precisão de uma maestrina. Era a Carmen.
A minha companheira de viagem tornou-se rapidamente uma presença essencial. Cada frase refletia a suavidade e segurança que a sua voz emprestava às nossas viagens, enchendo o caminho de magia. De facto, a Carmen guiava-me com uma serenidade inabalável, sem se zangar ou elevar o tom, mesmo quando, por vontade própria ou distração, eu ignorava as suas instruções. “¡Recalculando ruta!” – a voz sedutora e confiante assegurava-me que, na estrada, jamais ficaria perdido.
Quando vendi o carro, a Carmen partiu com ele. Desde então, não mais a vi. Imagino-a, agora, uma senhora madura, que continua a orientar viajantes por caminhos desconhecidos, sempre com a voz serena e cativante que um dia me guiou.