Amizades
Nos idos anos 50 o recurso epistolar era usado como antecâmara das redes sociais. Algumas cartas da época aparecem a conta-gotas, aqui e acolá, revelando traços de carácter do seu autor.
Dentro desse acervo epistolar, destaca-se a correspondência de uma figura particularmente enigmática: um político reservado nos propósitos e autoritário nas decisões, arquiteto de amizades cautelosas, controlador, protegido por zelosos guardiões do poder, sofisticado e paranoico nas suas precauções.
Minha Amiga,
Acabo, só agora, de receber, e de ler, as suas várias mensagens, anunciando-me, as primeiras, que está a chegar a estas paragens, e as últimas que já chegou e que me quer ver tão depressa quanto eu puder.
Dispusesse eu do tempo que, sendo de facto o que é, não me pertence, teria o prazer de logo aceder à vontade da minha Querida Amiga, mas, lamentavelmente, tal não me é permitido.
Verei, no lugar onde sabe que estou, e, atentas as circunstâncias, estarei, a solução que for possível, quando possível, para criar uma conta no WhatsApp, assim assegurando, pela encriptação ponto a ponto, que as nossas comunicações permaneçam abrigadas da perceção dos que, intencional ou inadvertidamente, se deem conta da identidade de quem aqui lhe escreve. Tenha, então, a minha Amiga a bondade de usar o canal, e apenas o canal, que, concordará, importa respeitar, sob o risco de o gosto e o proveito se perderem em vivacidades quiçá gravadas e expostas em público, não obstante o zelo daqueles que se encontram mobilizados no entendimento de que todos os incómodos serão precavidos.
Decerto a minha Amiga reconhecerá o mérito de, até lá, para que nada se confunda e possa deturpar, impor uma meticulosa parcimónia no uso de smiles, esses símbolos modernos tantas vezes empregados com leveza excessiva; e de que, sendo esta a solução que, tendo de convir ao que mais importa, convirá, assim sendo, a esta amizade, que deve ser mantida e guardada em lugar seguro 😊.
Com muita consideração e estima
A.
O romance epistolar As Noivas de São Bento (Portela, Artur. Lisboa: Dom Quixote, 2005) narra a história de um país concreto, utilizando cartas fictícias como meio de oferecer uma perspetiva única sobre o período em que Salazar viveu e governou.
O documento solto que agora se publica, a que o referido romande emprestou a inspiração e o género epistolar, evidencia a complexa dinâmica das amizades esquivas.