A Mulher segundo Qaddafi
À sombra do Arco de Marco Aurélio em Trípoli, onde a história romana se cruza com a civilização árabe, um restaurante requintado guarda segredos tão exóticos quanto os pratos que serve. O seu proprietário, um árabe com profundas raízes no Brasil – e que, por isso, fala português – oferece um menu que capta a imaginação dos visitantes. De entre as opções, o baby camel destaca-se como prato singular e sumptuoso. O camelo bebé é cuidadosamente preparado e depois estufado lentamente numa tagine, vedada com barro. Quando o prato é apresentado à mesa, quebra-se a selagem com a precisão de uma cimitarra, num cerimonial impressionante.
No meio de uma estada rica em exotismo e sabor, as minhas andanças pelo centro histórico de Trípoli levaram-me a outra descoberta cultural: uma pequena publicação de capa dura, quase sagrada, conhecida como o Livro Verde. Comprado por cinco dinares numa loja de bugigangas, este livro apresenta a peculiar visão do antigo líder líbio Muammar al-Qaddafi no domínio da filosofia política. Contém um capítulo sobre a base social da Terceira Teoria Universal, onde se aborda o papel da mulher. Traduzo:
É um facto indiscutível que tanto o homem como a mulher são seres humanos. A mulher come e bebe, tal como o homem... A mulher ama e odeia, tal como o homem... A mulher pensa e aprende, tal como o homem. A mulher tem sede e fome, tal como o homem. A mulher vive e morre, tal como o homem.
Por que razão existem, então, homem e mulher? Por que razão não foram apenas criados homens? Qual é, afinal, a diferença entre homem e mulher? Tem de haver uma qualquer necessidade natural para a existência de homens e mulheres, em vez de apenas homens ou apenas mulheres.
Isto significa, com efeito, que existe, para cada um, um papel que se adapta à diferença entre eles.
A mulher é fêmea e o homem é macho. De acordo com os ginecologistas, a mulher é menstruada, ao passo que o homem, sendo macho, não é menstruado e não está sujeito ao período mensal de hemorragia.
O ciclo menstrual para quando a mulher engravida. Se ela está grávida, fica, devido à gravidez, doente durante cerca de um ano. Como o homem não engravida, não está sujeito às doenças de que a mulher, sendo fêmea, sofre.
O autor continua:
Dispensar o papel natural da mulher na maternidade, isto é, arranjar creches para substituir as mães é o princípio de dispensar a sociedade humana, transformando-a numa sociedade biológica com um modo de vida artificial. Separar as crianças das mães e amontoá-las em creches é um processo através do qual estas são transformadas em algo parecido com pintos. As creches parecem-se com aviários onde os pintos são engordados, depois de saírem do ovo.
Nada a não ser os cuidados maternais são apropriados à natureza do homem e conformes com a sua dignidade.
O Livro Verde era destinado à leitura por todos os líbios. Diversos trechos foram transmitidos diariamente na televisão e na rádio, e os seus slogans podiam ser vistos em outdoors em todos os cruzamentos, com o Coronel Qaddafi, de óculos escuros, omnipresente.
Se o baby camel representa uma fusão de exotismo e sabor na culinária local, o Livro Verde de Qaddafi trouxe uma mistura de ideologia e autoridade que, durante décadas, se refletiu em todos os aspectos do quotidiano líbio.
A foto foi retirada da Wikipedia.
O Livro Verde, publicado originalmente em 1975, foi traduzido para 90 línguas.