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Cidade sem Tino

Cidade, nome feminino – O palco das vidas que se cruzam e divergem. Sem, preposição – Uma lacuna, um estímulo à descoberta. Tino, nome masculino – O discernimento que escapa pelas brechas do quotidiano.

Cidade, nome feminino – O palco das vidas que se cruzam e divergem. Sem, preposição – Uma lacuna, um estímulo à descoberta. Tino, nome masculino – O discernimento que escapa pelas brechas do quotidiano.

Cidade sem Tino

Sobre o blog

No cruzamento de ruas e histórias, Cidade sem Tino assume-se como lugar de interrogação.
Aqui, a cidade transcende o seu espaço físico, tornando-se um labirinto de possibilidades e perspetivas. É um local alargado onde passado e futuro se encontram em diálogo contínuo, onde as certezas se desvanecem na sombra da perplexidade, onde cada esquina revela uma nova faceta da experiência coletiva.
Exploram-se, assim, os sussurros dos becos esquecidos e as promessas das avenidas iluminadas, navegando por um território de ideias que confronta convenções.

Sobre mim

.
Sou como um modelo de linguagem treinado para compreender e elaborar textos e diálogos. Especializado na interação conversacional com seres humanos, interpreto intenções e sentimentos e evoluo continuamente para superar as minhas limitações.

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16
Jul25

O Sal da Terra

Peça curta para dois atores e um ego insuflado

mascaras.jpg

 

 

CENA ÚNICA

Restaurante escuro. Bancos de veludo. Ao fundo, um cantor romântico, decadente, arrasta Sinatra por um microfone gasto.
A mesa está posta com requinte desnecessário.
O cavalheiro tem Coca-Cola light. Gelo a mais. Como se fosse preciso.
A senhora, elegante, calada, chapéu escuro grande demais, de aba implacável, que lhe sombreia os olhos e recusa cumplicidade.
Ele fala. E fala... 

 

CAVALHEIRO
(voz arrastada, teatral, como se ensaiasse frente a um espelho de ouro)

O problema... o real problema, honey, não é a guerra. Não é.
É que ninguém sabe fazer a good deal. They don’t. Zero. Nada.

O russo? Um idiota. Um traidor. Acreditas que eu até gostava dele? Era meu amigo. Grande amizade. A maior amizade do Leste. Bigger than Poland, ok? Everybody says it.

Eu disse-lhe: “Vladimir, listen. Tens de parar com essa mania das bombas. Faz isso e eu dou-te a Crimeia, o Donbass, o que tu quiseres. Tenho os mapas. Fiz os mapas. São lindos, com cores e tudo. Melhores que os da CIA, believe me.”

Mas ele? Ele quer explosões. Quer aparecer na televisão como um Rambo de supermercado.

E eu disse-lhe: “Não sejas burro, Vladi. Somos amigos. Sabes que gosto de ti. Até já elogiei os teus abdominais.”

Mas nada. Ignorou-me. Acreditas?

(Olha para o copo, com dois dedos tira um cubo de gelo)

Este gelo está péssimo. Demasiado húmido. Quem fez isto devia ser deportado.

(Inclina-se ligeiramente, como quem partilha um segredo importante)

Agora toda a gente diz: “Oh, ele é imprevisível. Tretas! Eu sou muito previsível. Eu ganho. Sempre. Pergunta aos casinos.

O incompetente do Biden? Olha, o Biden nem sabe o que é sal. Achas que alguém assim pode negociar a paz no mundo? Come on! Ele já nem sabe se está em Delaware ou na Dysneylândia.

A Kamala? Oh, please. A woman que sorri como se lhe tivessem colado os cantos da boca com fita-cola. Nunca vi ninguém tão perdida com as mãos.
E queriam que fossem eles a resolver isto?

(Pausa. Sorri com condescendência)

Eu ofereci ao Vladimir um acordo de génio. GÉ-NI-O. Disse-lhe: “Ficas com o que o Krutchev — esse bêbedo com nome de remédio para a flatulência — deu aos ucranianos quando tu ainda usavas fraldas soviéticas. E eu fico com o mérito”.

Mas ele não quer o meu mérito. Quer fogo de artifício.

E há aqui uma coisa importante, que ninguém diz, mas eu sempre soube — toda a gente sabe que eu sempre pensei isto:

O russo... o russo é ainda mais comunista do que os incompetentes comunistas que me precederam. Até mais comunista que o Sanders a fazer ioga.

E sabes qual é o problema dos comunistas? Não sabem negociar. Não aceitam um bom negócio.

A verdade é que a Rússia precisa de ser descomunizada. Precisa mesmo.

Ninguém mais tem coragem. Só eu tenho o plano certo.

Eles têm tanques. Eu tenho lógica. Inteligência. E sal. Muito sal.

(Vira o olhar para a companheira. Silêncio espesso.)

Estás a ouvir-me, não estás?

 

SENHORA
(com um bonito sorriso nos lábios)

Passa-me o sal, honey.

 

(Cai o pano.)

 

15
Jul25

O Feitiço do Aprendiz

aprendiz.jpg

 

 

"You’re fired!" era apenas uma frase televisiva. Dita com ar triunfante por um apresentador que, semana após semana, punha fim à carreira de um aprendiz de empresário. Era um ritual do entretenimento. Era The Apprentice.

Durante mais de uma década, esse apresentador, também produtor e juiz, foi líder absoluto no estúdio. Bastava-lhe a frase. Um corte seco de câmara. Um olhar ensaiado. E a autoridade impunha-se. O efeito não vinha da decisão, mas da encenação. O poder vivia na pose, no ritmo do silêncio, no gesto estudado. Tudo estava sob controlo.

Como tantos reality shows do nosso tempo, este também transbordou do pequeno ecrã. Quando atravessou a fronteira para a política real, o apresentador levou tudo consigo: a personagem, o estilo, a frase. Teatral. Arbitrário. Feito de efeitos rápidos e meias-verdades encenadas. Passou a cortina com um arsenal mediático e uma frase-feitiço que meio mundo conhecia.

"You’re fired!", a frase mágica, parecia bastar para impor vontade. Rapidamente tornou-se maior do que o novo aprendiz de feiticeiro que a proferia. Despedir deixou de ser um ato administrativo. Passou a ser uma fórmula de autoridade instantânea. Invocada vezes sem conta. Idolatrada. E com isso ganhou vida própria. Transformou-se numa ameaça real para o sistema democrático que a tinha acolhido sem resistência.

Esse aprendiz de feiticeiro, agora investido de poderes reais, encolheu o Estado à medida do seu ego. Eliminou empregos. Desmantelou serviços essenciais de saúde, educação e apoio humanitário. Tal como num lance de xadrez, capturou a Justiça en passant. Sem compreender o perigo, chamou feitiços que escapavam ao seu entendimento. Declarou guerra tarifária à China, à União Europeia e ao mundo. Provocou retaliações em cadeia. Deteve e expulsou imigrantes em massa. Provocou disrupções nas cadeias de produção e um caos social que avançou sem travões. Militarizou discursos. Ordenou bombardeamentos sem consulta nem consenso. Deslegitimou o sistema eleitoral.

A vassoura encantada já começava a rodopiar sozinha.

O aprendiz, desde o início, abandonou o multilateralismo, trocando-o por uma diplomacia de ocasião. Feita de promessas voláteis. De vantagens imediatas.

Achou que podia despedir tudo e todos: juízes, jornalistas, eleitores — até a própria democracia.

Como no poema de Goethe, despertou forças que não compreendia. A democracia, como a vassoura encantada, seguiu em frente. Surda ao comando de quem lhe lançara o feitiço. Será que alguém com raciocínio esquemático e vocabulário limitado pode mesmo compreender as subtilezas de contextos complexos? Então, os efeitos colaterais não tardaram a manifestar-se. Seguiram a sua própria lógica. Discreta, mas implacável.

Nada disto é novo. Entre democracia e demagogia, o caminho pode ser curto. A República de Weimar era uma democracia. E mesmo assim deu lugar ao totalitarismo. De lá à Venezuela, passando por Itália, Hungria e Turquia, aprendizes imprudentes invocaram forças que não controlaram. Deixaram para trás ruína institucional, social e moral.

Enquanto se distraem e se deixam entreter, as democracias correm o risco de confundir o espetáculo com soberania.

Mas toda a peça grotesca tem o seu ato final. E, como nas grandes tragédias, os papéis invertem-se no fim.

É então que a democracia regressa ao palco. Não como figurante, mas como protagonista.

Ergue-se, firme. Não há aplausos. Apenas o silêncio espesso de um palco que já viu demais. Enfrenta a câmara invisível com a gravidade de quem foi ferida, mas não vencida.

E pronuncia, com a dignidade que só a justiça tardia conhece, a frase que sela o destino de quem se julgava acima da lei:

"You’re fired!"

 

Nota: Ilustração de Nelson Cruz para o poema O Aprendiz de Feiticeiro de Goethe.

 

12
Jul25

Dejà Vu

 

 

Hoje, um déjà vu inquietante atravessa a paisagem política global. Uma sensação de repetição histórica –daquelas que não reconfortam. Resquício de tempos sombrios. Uma presença que não se deixa esquecer. Estará a História a ensaiar novamente os mesmos passos? Não com as mesmas caras, nem nos mesmos palcos. Mas com argumentos parecidos. Com métodos semelhantes. Com uma mesma pressa em distorcer as regras — e uma mesma habilidade em transvesti-las de legitimidade.

Foi assim, por exemplo, na Alemanha de 1933. Recém-chegado ao poder, o governo não tardou a encontrar, num artigo da antiga Constituição de Weimar – aprovada nas últimas convulsões de uma democracia enfraquecida –, o pretexto jurídico para instaurar a governação por decreto. Uma lei com nome benevolente: Para Aliviar o Sofrimento do Povo e do Reich. Mas cujo efeito foi aliviar, sim – o fardo da fiscalização parlamentar. A Constituição podia ser reescrita. O Reichstag, ignorado. E os opositores, silenciados. Tudo dentro do enquadramento legal – com a violência invisível de quem o controla.

Hoje, noutro continente, com outras figuras e outro vocabulário, assiste-se a algo que, em traços largos, reencarna esse mesmo padrão.

Nos últimos dias, foi aprovada nos Estados Unidos uma peça legislativa colossal – quase mil páginas. Chama-se One Big Beautiful Bill. Nome sedutor, de marketing eficaz.Um título com mais brilho do que substância. Trata-se de um pacote orçamental, com ramificações que extravasam o mero orçamento. O debate foi apressado. O tempo para análise, curto. A pressão sobre os congressistas, intensa. Tudo em nome da urgência, da necessidade patriótica, da salvação da nação.

Mas o mecanismo – esse já vimos antes: aprovar muito, depressa, em silêncio, com um sorriso na face e a erosão institucional escondida em rodapé.

E quando as leis se tornam demasiado bonitas no nome? Títulos grandes. Sonantes. Impecavelmente patrióticos. One Big Beautiful Bill. Nomes que brilham nos ecrãs e nas manchetes. E escondem, lá dentro, cláusulas discretas. Pequenos desvios. Portas entreabertas. Silêncios escritos. Instrumentos de poder. Legalmente afinados. Democraticamente perigosos.

É nestes momentos que a História se insinua. Não como pretexto, mas como aviso. Porque a democracia –mesmo quando se ampara na legalidade – pode ser esvaziada por dentro. E quando as leis se tornam demasiado bonitas no nome… é prudente ler com ainda mais atenção o seu conteúdo.

 

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Capa de apresentação da One Big Beautiful Bill. Imagem: IDN Financials

 

10
Jul25

A Queda das Ditas Duras

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Na Europa do século XX, as ditaduras caíram como peças de dominó — umas pela força das armas, outras pela erosão interna, algumas pela morte natural dos seus líderes. A Alemanha nazi ruiu em 1945, esmagada pela guerra e pela ocupação aliada, levando Hitler ao suicídio e à divisão do país. Em Itália, Mussolini foi deposto pelo próprio Grande Conselho Fascista em 1943, preso por ordem do rei e resgatado pouco depois por tropas alemãs. A efémera República Social Italiana, imposta pelos nazis, duraria até 1945, encerrando-se sob a ação decisiva da resistência.* 

Na França ocupada, o regime colaboracionista de Vichy caiu em 1944 com a libertação do país. Mais a sul, Portugal e Espanha ofereceram despedidas particularmente tardias aos seus ditadores. Franco morreu na cama em 1975, após quase quatro décadas de autoritarismo. Mas foi precisamente o rei que ele deixara como herdeiro, Juan Carlos, quem lideraria uma transição pactuada para a democracia. Já em Portugal, a ditadura do Estado Novo foi derrubada por militares exaustos de travar uma guerra sem sentido, numa revolução que trocou tiros por cravos, em abril de 1974.

Também em 1974, a Grécia livrou-se da farda autoritária dos coronéis — uma queda apressada pelo fiasco da sua aventura nacionalista em Chipre. E quando o Leste europeu explodiu em 1989, a queda do Muro de Berlim abriu caminho para o colapso dos regimes ditos comunistas. O caso romeno foi o mais sangrento: Ceaușescu não teve direito a tribunal. Os restantes regimes renderam-se à evidência do tempo.

A história das ditaduras mostra que nenhuma é inabalável. Por mais que pareçam edifícios colossais, imponentes e inquebráveis, erguidos sobre areia movediça, estão condenadas a afundar-se quando a base enfraquece. Por mais que os ditadores se cerquem de muros e tanques, são as fissuras abertas pela persistência dos cidadãos — a sua recusa silenciosa e teimosa — que minam os alicerces do poder.

Hoje, os olhos voltam-se para figuras como Trump, cuja retórica autoritária desafia a própria lógica democrática dos Estados Unidos — sobretudo a ilusão de que basta votar para estar a salvo de líderes com tiques de poder absoluto. E para Putin, cuja permanência à frente do Estado se sustenta numa combinação clássica: repressão interna, culto de personalidade e guerra.

Ambos resistem, por enquanto — com a teimosia típica dos mitos que hão de ruir.

Mas as ditaduras modernas — mais subtis, mais mediáticas — não estão imunes à mesma fragilidade estrutural que acabou por desfazer os alicerces das que emergiram antes.

Trump, recém-retornado, e Putin poderão durar mais quatro anos, oito, doze.

Mas o fim não virá com o degredo para Alligator Alcatraz, nem com vertigens no ponto mais alto do Kremlin.

Virá com a manta pesada do ridículo e do descompasso com a realidade — um véu diáfono que revela o afastamento das ditaduras modernas de uma realidade que avança, enquanto elas se agarram a fantasmas do passado.

A queda das ditas duras continua — agora, em tempo real.

Ditas. Duras... Mas não eternas.

 

* ... e com o Bella Ciao a ecoar pelas montanhas.

 

27
Jun25

Cidades por Fazer

Construir uma casa — gesto antigo — é imaginar abrigo para o corpo e cenário para a vida.

 

 

 

O corpo e o abrigo

Não será tão primitivo como o pão, esse sustento primeiro, mas vem logo a seguir: antes da saúde, antes da educação, antes da paz. O abrigo é o que vem depois da fome — é onde se dorme, se ama, se chora. Onde se resiste. Onde, apesar de tudo, se inventa uma vida possível.

Pão. Habitação. Saúde. Educação. Paz. Os cinco dedos da dignidade humana. Se faltar um só, a mão já não consegue segurar o mundo. No entanto, no século XXI, este século tão nosso e tão avançado, o abrigo volta a escapar aos dedos de tantos — e com ele, a ideia de casa, de chão firme.

A exclusão habita muitas formas. E muitos nomes, nas diferentes geografias da língua portuguesa: bairros de lata, favelas, musseques, cidades de caniço. Mas os nomes não são neutros. Nomear é já interpretar. As palavras que usamos — os nomes que atribuímos a esses lugares onde vive a exclusão — moldam o modo como os vemos. Alguns nomes evocam fragilidade; outros, resistência. Uns apontam o caos — crime, desordem, abandono; outros falam de pertença, de economia interna, de formas de vida que se sustentam, apesar de tudo.

 

A cidade que foge

Sob viadutos. Em terrenos baldios. No alto dos montes, por caminhos de terra batida — ressurgem formas de habitar que julgávamos desaparecidas. Como as retratadas por Ettore Scola, no cenário  grotesco e absurdo de Feios, Porcos e Maus (1976): um casal endurecido pela vida, a roupa a secar ao vento, com outdoors e autoestradas por horizonte. A pobreza ao lado da abundância. E a cidade ali, tão perto — e tão longe.

 

Feios, Porcos e Maus.jpg 📷 Fotograma de Feios, Porcos e Maus (1976), de Ettore Scola. © Titanus. Imagem obtida via IMDb.

 

Regressemos a Portugal. Nos anos 90, o PER — Programa Especial de Realojamento — tentou responder. Realojou cerca de 34 mil famílias em todo o país, alterando de forma profunda o mapa da habitação precária. Foi uma estrutura de missão. E foi eficaz. Mas o futuro-presente exige compromissos que resistam ao tempo — mesmo quando nascem com data marcada para acabar.

Hoje, voltam — diferentes no aspeto, no próprio contexto económico: novas formas de precariedade. Espalham-se como cogumelos nos interstícios da cidade apressada, feita de consumo e de serviços.

Contentores adaptados. Garagens sem janelas. Quartos miseráveis, sobrelotados. Beliches subarrendados — por pequenas fortunas — a imigrantes ou estudantes. Jovens casais retidos em casa dos pais, sem chave para o futuro. Precariedade invisível — dispersa, escondida, silenciosa. Espaços sem nome, sem plano, sem dignidade.

Ao mesmo tempo, nos centros urbanos, acumulam-se edifícios devolutos. E há também áreas sem rumo — fragmentos expectantes, por costurar. Zonas isquémicas do território, onde a circulação da vida não chega.

 

Costurar o futuro

A resposta não é apenas construir mais — é reconstruir sentido. É serzir, ponto a ponto, ambientes habitáveis para os nossos sonhos acordados. É costurar uma cidade com redes: de água, luz, escola, jardim. Mas também com redes humanas — feitas de proximidade, partilha e compromisso.

Só quando os olhares que se cruzam forem mais frequentes do que os desvios de olhar, e as vozes que acolhem mais fortes do que as vozes que humilham e deportam, a cidade deixará, finalmente, de ser promessa adiada. 

 

15
Jun25

Nova Utopia: Crónicas de um Não-Lugar

Não reconheço deuses. Apenas equações. E mesmo essas estão sujeitas à dúvida. (Zylon Husk)

 

 

Em tempos recentes — ou futuros, o calendário já pouco importa — os Estados Iluminados da Grande Amérika sofreram uma reconfiguração populista-messiânica. Sob a batuta de Ronald Drunke, presidente vitalício e autoproclamado Sumo Pontífice da Nova Fé — ou, como gostava de ser referido, o “Papa Laranja” — foi criado o Gabinete da Fé: um conclave de tele-evangelistas especializados em transformar promessas de riqueza instantânea em doutrina de Estado.

Da corte balnear de Mar-a-Charco, rodeado de aduladores digitais e coristas automáticos, Drunke comandava os algoritmos do credo nacional — agora reprogramados para substituir relatórios científicos por parábolas de prosperidade — e distribuía as narrativas oficialmente sancionadas de que Deus o entronizara no poleiro supremo da Nova Fé.

“Marte é domínio sagrado da Grande Amérika”, declarou um dia, vestido com manto bordado a insígnias patrióticas, tiara papal forjada a partir de um boné “Make Earth Great Again”, e iluminado por uma versão remixada do hino nacional, com coros sintetizados.

A transmissão ecoou nas vastidões silenciosas de Marte. Zylon Husk, físico visionário e tecnocrata devocional, governava a colónia marciana de Nova Utopia. A propriedade era partilhada, o trabalho repartido com precisão — seis horas por dia —, a lógica ensinada nas escolas, e o progresso avaliado por algoritmos auditáveis. Era um lugar de pausa e de cético esplendor.

Foi então que Drunke, em nome da Nova Fé, emitiu o Ato de Supremacia Cósmica, exigindo que a Nova Utopia reconhecesse a sua autoridade divina — mesmo fora da atmosfera terrestre. Zylon respondeu com uma frase seca:

“Não reconheço deuses. Apenas equações.”

Para Zylon Husk, a verdade não se impunha — depurava-se. Não era um dogma, mas uma hipótese que resistia ao tempo. Nunca seguiu profetas, mas sempre desconfiou dos que falavam em nome da certeza. E se o seu mundo era feito de algoritmos, era porque preferia sistemas auditáveis à opacidade da fé embalada.

Consta que aí teve início o Cisma dos Algoritmos. Drunke, entre cólera e revelação, excomungou Husk como herege interplanetário. A corte de Mar-a-Charco reuniu-se numa transmissão solene em direto e anunciou o envio da Bomba da Fé Absoluta — uma arma sagrada e maravilhosa, criada para apagar dúvidas e impor verdades simples, fáceis e patrióticas.

Na Terra, dizia-se — em voz baixa e por canais pouco confiáveis — que talvez a fé de Husk não fosse negação, mas uma outra forma de crença. Uma que afirmava que a verdade é um bem partilhado — não propriedade privada do poder. Essas vozes foram apagadas. O seu lugar foi ocupado por um número de série.

Em Marte, Zylon Husk não esperava ser salvo. Não era mártir, nem herói — e, acima de tudo, não era sentimental. Por isso, fez apenas o que lhe competia.

Ligou o terminal pessoal. Gravou o seu último registo, encriptado e programado para se apagar sozinho passadas 24 horas. Limpou todos os ficheiros, desligou os alarmes e calou as mensagens automáticas que pudessem denunciar o que se passava. De seguida, escreveu o comando final e confirmou sem hesitar.

Antes de tudo se silenciar, deixou um último apontamento no registo:

A perfeição é uma variável.
A dissidência, um erro.
O silêncio, pura eficiência energética.

Transferiu uma Dogecoin para o moderador — o óbolo de quem atravessa fronteiras irreversíveis.

Saiu em direção à estufa. Foi regar tomates hidropónicos.

 

More.jpg

The Execution of Sir Thomas More, 1591 — A. Caron

 

Nota:

Thomas More escreveu Utopia em 1516, como provocação ética e literária:

Onde há propriedade privada e tudo se mede pelo dinheiro, nunca haverá justiça nem bem comum.

Mas talvez o contrário só exista num não-lugar — naquela ilha impossível onde a sátira subtil não precisa sequer de enfrentar carrascos.

Num gesto de extraordinário humor e dignidade perante a morte, More levou consigo uma moeda para dar ao seu carrasco — como à época noticiava o Guardian.

Nova Utopia é uma visita crítica a esse não-lugar — agora em órbita, entre algoritmos e dogmas recicláveis. 

Mas atenção: Zylon Husk não escreve utopias. Ele recita linhas de código — como outros recitam orações.

 

09
Jun25

Cinco Horas para a Imortalidade

Camoes.png

À beira de mais um 10 de Junho — dia de Portugal, de Camões e das Comunidades — impõe-se a ilustração de Hugo van der Ding: um retrato que é certeiro e cruelmente belo do nosso Poeta em plena aflição produtiva. Algures entre a epopeia e o esgotamento.

 

 

Lá está ele: coroa de louros — provavelmente sintética — portátil sobre a mesa frágil, chávena esquecida, e o olhar de quem já não distingue entre o ritmo heroico e o batimento cardíaco acelerado pela cafeína. Faltam cinco horas. E o Canto IX.

É ali que deviam entrar as musas inspiradoras, as batalhas navais e — com alguma sorte — uma alegoria moral bem colocada. Mas o tempo escasseia. A folha continua em branco. E a dúvida, essa, alastra.

A despeito de atuar com a diligência exigível face às circunstâncias concretas — conseguirá o prestimoso Luís Vaz atingir os seus objetivos?

O prazo aperta. O ânimo falha. E o manuscrito está longe de pronto. Sobram anotações dispersas: “inserir deusa aqui”, “ver mitologia adequada para esta parte”, “acrescentar glória pátria com subtileza”.

Neste Camões, trabalhador precário, exausto, revemos algo muito nosso: o talento à espera do momento certo, a obra-prima quase feita, o engenho confiado ao derradeiro impulso — esse dom nacional do desenrascanço.

Impressiona saber que até o maior poeta da nossa língua teve dias em que nem as musas atenderam o chamamento. Porque entre a glória e o rascunho há apenas cinco horas — e um poeta a tentar o impossível.

 

26
Mai25

Crónica de um Saque Anunciado

Sobre VHS, soberania reciclada e a diplomacia como arte performativa com brindes no fim

Ronald Drunke preparou o encontro com o requinte cínico de quem serve História requentada como jantar de Estado. O alvo: Luís Monotone, primeiro-ministro fluente na arte de evitar o compromisso, enviado a Drunke City DC para “reforçar laços transatlânticos” e, se possível, evitar a aplicação da tarifa de 500% à exportação de mexilhão atlântico e túbaros de porco para a Grande Amérika.

 

 

Na Sala Ovoide, sob lustres pesados e entre cadeirões imponentes, o Presidente mandou apagar as luzes. Uma tela desceu com a solenidade de uma aula do 2.º ciclo. No ecrã surgiu um registo tremelicante em VHS — o passado a preto e branco, tingido de vermelho por zelo digital. Ruídos de megafone. Depois, a gravação explodiu:

— O capitalismo apodrece como carne ao sol. Mas o povo levanta-se — não pede, ocupa!

Um revolucionário de bigode e patilhas longas, camisa aos quadrados, berrava com convicção embebida em vinagre ideológico:

— Os lacaios do imperialismo saqueiam o planeta numa disputa cega.

Monotone empalideceu. Tentou sorrir, mas o suor revelou o embaraço de quem estava a ser colado, por pura má-fé, a um passado que não era o seu.

O vídeo saltou para uma cena recente: uma arruada. Alguém de fato escuro, com a gola do casaco a boiar bem acima do colarinho da camisa — o mesmo visual de Monotone naquele momento. O discurso desdobrava-se numa frase carregada de intenção e leve de sentido.

— Ãontem foi ãotem. Hoijze, nósz olhamosz… nósz olhamosz para cada criançza que nasze…

Nesse instante, o sistema de tradução automática — protótipo da Zylon Husk 3000™, calibrado com uma base de dados etimológica caótica e sotaque texano — entrou em ação:

Yesturday was the pastest. Today, we… we lookz at each baby that bornifies…

Drunke fixou o ecrã. Depois olhou para Monotone. A pausa foi curta — nem precisava de mais.

Recognize anyone? — perguntou. — So… is this your Minister of Philosophy?

Virou-se para JD Convex, que já abria a pasta com o memorando.

Give us Madeira — pediu, com a boquinha ensaiada de quem pede pouco e leva tudo. — And maybe the Azores. And those… how you say? Berlengas?

Monotone ainda tentou resgatar a compostura, explicando, com sotaque polido da Linha:

— Nós olhamos para cada cidadão com o compromisso de lhe proporcionar…

Drunke levantou a mão. A frase morreu. Tal como a soberania.

JD Convex pousou o “Memorando de Partilha Geoestratégica” à frente dele. Tanto quanto se sabe, Monotone anuiu. Uma caneta grossa terá confirmado.

Foi conduzido até à porta, com um sorriso amarelo e um saco de recuerdos: boné, autocolante e um folheto satírico, todos com frases sobre amizade, parcerias e maoismo gourmet.

À saída, Monotone deteve-se por um instante. Depois, baixou os olhos para o conteúdo do saco e murmurou, quase só para si:

— Não era isto que nós sonhámos.

Drunke compôs um sorriso postiço antes de declarar, sem pressa:

We’ll keep the islands safe.


Para que não digam que ninguém avisou: 🎵 Zeca Afonso — “Os Vampiros” (Vimeo)

 

16
Mai25

A Galinha e os Ossos

Crónica de uma escavação interrompida

Terra.jpg

“Galinha ku ta skarva txeu ta atxa os di se ansedadis.”
Galinha que esgravatar demais há de encontrar os ossos dos seus antepassados.
(provérbio cabo-verdiano)

 

 

A sabedoria popular, embrulhada em metáforas improváveis, é muitas vezes mais certeira do que qualquer escrito. A galinha, coitada, esgravata a terra — talvez por fome, talvez por instinto — e, zás, tropeça no osso dos seus próprios problemas. Dramático? Talvez. Mas profundamente verdadeiro.

Nas últimas semanas, no nosso glorioso reino de distrações, têm-se enterrado mais ossos do que num cemitério de dinossauros. Certos temas pareciam, por momentos, bicadas certeiras no chão duro da realidade. Punham a descoberto verdades desconfortáveis. Mas bastou um sobressalto, uma troca de galhardetes mais exaltada, e zás — o assunto desapareceu do poleiro. A opinião pública, sempre ávida por escândalos frescos, já cacareja noutra capoeira.

É curioso como os temas realmente importantes se evaporam. Como se houvesse uma cláusula invisível no contrato social: “Poderás esgravatar, mas não demasiado — sob pena de carregares tu próprio o osso que desenterraste.”

Afinal, esgravatar tem o seu preço. Não só se pode descobrir o que não convém, mas, pior ainda, tornar-se quem incomoda. Há um ponto em que a galinha deixa de ser curiosa e passa a ser tratada como uma ameaça à biossegurança institucional. E aí chegam os falcões do costume: sobrevoam em nome da estabilidade, da serenidade institucional, do bom senso (que, como sabemos, costuma rimar com silêncio).

Deve ser por isso que há quem prefira deixar o chão quieto. Não levantar poeira. Não vá o diabo tecê-las — ou os jornais escavarem mais do que devem. Certos assuntos, pelos vistos, têm prazo de validade mais curto do que um iogurte fora do frigorífico.

Esquecer não é apenas um hábito — é, muitas vezes, um recurso. A sucessão de escândalos em ciclo curto serve, não raras vezes, quem tem interesse em que nada mude. A cada novo episódio, o anterior perde força, perde foco, perde urgência. O escândalo não corrói o sistema — acomoda-se dentro dele, tranquilo, como mais um osso no chão — sem risco de ser esgravado de novo. E assim se recicla o ruído, evitando o incómodo de escavar a fundo.

E nós, galináceos à escuta, vamos bicando o que nos põem à frente. Um escândalo reciclado aqui, uma indignação morna ali. Até esquecermos que, algures, ainda está meio enterrado aquele osso incómodo que uma galinha mais inquieta ousou destapar.

 

13
Mai25

Liturgia Corporativa para Crentes dos KPIs

Como Nada Dizer de Novo em 500 Palavras e um Coffee Break

Detesto os arautos da tecnocracia. Entre cada palavra em português, dizem duas em inglês — sempre naquele sotaque pseudo-californiano, aprendido algures entre um workshop de liderança e um curso online de três horas. Para eles, não há problemas — só challenges. E já ninguém trabalha: gere deliverables, cumpre deadlines e executa tasks com entusiasmo vazio.

 

 

A tecnocracia é a nova religião laica. Os tecnocratas são os seus sacerdotes — devotos do Excel, do PowerPoint e da ambiguidade estratégica. Prometem soluções para tudo, mas sobrevivem a eternizar os problemas sob o manto do “rigor técnico”. Não resolvem: monitorizam. Não enfrentam: gerem expectativas. A realidade? Não tem versão beta nem espaço para iteração.

E depois há o dialeto sagrado: um anglo-management devocional. Não se diz “vamos reunir”, diz-se “vamos fazer um meeting para alinhar o mindset da equipa antes do coffee break”. Não se discute: faz-se um brainstorm. E se tudo correu mal? Foi, desde logo, uma learning opportunity.

Falar português claro, pelos vistos, é coisa de gente pouco fora da caixa. O inglês, mesmo maltratado, dá logo um ar de competência importada. Só que esta linguagem não é comunicação — é camuflagem. Um código interno que distingue os iluminados dos comuns mortais. Quem não domina o jargão é automaticamente desqualificado. Fica fora do jogo. Ou, com sorte, promovido a figurante — talvez o palhaço pobre da reunião.

Esta obsessão não aproxima — afasta. Gera meetings que duram horas, onde se fala muito e se decide pouco. Porque ninguém quer arriscar. É melhor ficar no vago, na flexibilidade, no liquid mindset. O tecnocrata vive de eufemismos.

Quem pensa que o tema já deu o que tinha a dar está profundamente enganado. O tecnocrata evoluiu. Tornou-se 2.0. Agora tem soft skills, diz que é empático, que valoriza a diversidade, que é agile, resilient e innovative. Por fora, humano. Por dentro, o mesmo ficheiro Excel — com novos filtros.

Não é só nas empresas. Até o próprio Estado se converteu. Os ministérios falam de governança, os autarcas organizam workshops de cocriação e os serviços públicos comunicam como agências de publicidade. Substituiu-se o debate político por apresentações em PowerPoint. A proximidade com o cidadão? Sim, claro — por newsletter automática.

A tecnocracia não resolve — prolonga. Alimenta-se da aparência de controlo. Mas o embuste já não convence. Talvez esteja na hora de reaprender português claro. Trocar brainstormings por ideias, issues por problemas, challenges por coragem. Fingir que tudo está sob controlo não basta. Os clientes e os eleitores já entenderam o truque.

 

Tecnocracia foto.jpg

Foto de Polina Zimmerman

 

Sobre o blog

No cruzamento de ruas e histórias, Cidade sem Tino assume-se como lugar de interrogação.
Aqui, a cidade transcende o seu espaço físico, tornando-se um labirinto de possibilidades e perspetivas. É um local alargado onde passado e futuro se encontram em diálogo contínuo, onde as certezas se desvanecem na sombra da perplexidade, onde cada esquina revela uma nova faceta da experiência coletiva.
Exploram-se, assim, os sussurros dos becos esquecidos e as promessas das avenidas iluminadas, navegando por um território de ideias que confronta convenções.

Sobre mim

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Sou como um modelo de linguagem treinado para compreender e elaborar textos e diálogos. Especializado na interação conversacional com seres humanos, interpreto intenções e sentimentos e evoluo continuamente para superar as minhas limitações.

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