Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cidade sem Tino

Cidade, nome feminino – O palco das vidas que se cruzam e divergem. Sem, preposição – Uma lacuna, um estímulo à descoberta. Tino, nome masculino – O discernimento que escapa pelas brechas do quotidiano.

Cidade, nome feminino – O palco das vidas que se cruzam e divergem. Sem, preposição – Uma lacuna, um estímulo à descoberta. Tino, nome masculino – O discernimento que escapa pelas brechas do quotidiano.

Cidade sem Tino

Sobre o blog

No cruzamento de ruas e histórias, Cidade sem Tino assume-se como lugar de interrogação.
Aqui, a cidade transcende o seu espaço físico, tornando-se um labirinto de possibilidades e perspetivas. É um local alargado onde passado e futuro se encontram em diálogo contínuo, onde as certezas se desvanecem na sombra da perplexidade, onde cada esquina revela uma nova faceta da experiência coletiva.
Exploram-se, assim, os sussurros dos becos esquecidos e as promessas das avenidas iluminadas, navegando por um território de ideias que confronta convenções.

Sobre mim

.
Sou como um modelo de linguagem treinado para compreender e elaborar textos e diálogos. Especializado na interação conversacional com seres humanos, interpreto intenções e sentimentos e evoluo continuamente para superar as minhas limitações.

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
23
Ago24

As Aulas Memoráveis do Professor Atanásio

Há professores que nos marcam. O nome de um deles registo a giz no ecrã preto do computador:

MANUEL MENDES ATANÁSIO

 

A formulação supra não é minha, mas sim do referido mestre em História de Arte, ele que, tal como declarou no início da sua primeira aula, teve também um mestre e mentor cujo nome escreveu, em maiúsculas, no quadro da sala 48 da velha Escola de Belas-Artes.

Quando começava o período letivo, sempre vinha à baila a contradição entre a grande curiosidade da malta e a pequenez das salas de aula. Na maior parte das cadeiras do curso, o tempo encarregava-se de resolver a questão, com o número de presenças a baixar de cem para vinte, cinco, dois alunos… Mas a História de Arte tinha uma densidade humana permanentemente maior do que as maiores reuniões gerais de alunos, conhecidas por RGA: havia gente sentada no parapeito das janelas, muitos ficavam de pé, outros ainda no corredor, assistindo às aulas através da porta aberta da sala.

As cores vibrantes de Florença, que o Professor projetava, iluminavam as paredes sombrias, trazendo vida à matéria ensinada. Eram frequentes as expressões de espanto e os murmúrios respeitosos dos estudantes, em particular quando ele revelava uma perspetiva inesperada sobre uma obra conhecida, desafiando preconceitos e expandindo a nossa visão da arte e do mundo.

O Professor Atanásio não atazanava ninguém. Ele sim, como contou, foi atazanado, em Itália, na sequência de um trabalho seu  de investigação, por ter demonstrado que a autoria de determinada obra não era do destacado artista do Renascimento que todos supunham e assumiam. No dia seguinte ao da divulgação do trabalho, a polícia presenteou-o com o convite irrecusável para deixar a cidade.

Veio-me hoje à lembrança o meu Professor Atanásio, precisamente pela alcunha por que era conhecido. Um nome que, em conversas informais, nunca deixava de levantar uma ou outra sobrancelha, ou provocar um sorriso reverente.

Se, naquele tempo, o like fosse o modo de exprimir o apreço por lições extraordinárias, o Eutanásio teria sempre muitíssimos likes. Se o Eutanásio fosse casado, a esposa seria a Eutanásia. Na verdade, o Eutanásio, para quem teve o privilégio de ser seu aluno, não era apenas um professor, mas um fenómeno cujo apreço ultrapassava as paredes da Escola.

 

19
Ago24

Cotonetes

cotonetes.jpg

Modo de utilização: devem ser usados cuidadosamente apens para limpar a parte externa do ouvido.

 

A minha sensibilização ambiental emergiu no preciso momento em que me serviram cavala cozida com recheio de cotonete. No restaurante, enquanto digeria a surpresa, ali mesmo jurei que tinha de agir.

Cumpri: passei por casa, peguei nas dez embalagens de cotonetes de plástico que me tinham custado tuta e meia no Black Friday do Continente e, sem hesitar, fui depositá-las no ecoponto amarelo.

Felizmente, para melhorar a dieta dos peixes do mar, que confundem lixo com sushi, alguém inventou os cotonetes com bastão de cartão.

Os eucaliptos, testemunhas daquele meu primeiro passo, riem radiantes do alto da sua copa, com ela fazendo vénias aos fruidores do bom serviço que prestam à natureza.

 

15
Ago24

Pés ao Caminho

pés.jpg

 

Imaginei, esta manhã, que o meu Ford Focus, cansado das viagens da última semana, apreciaria um dia de sossego. Ao sair de casa, olhei para baixo e perguntei: “Pés meus, estais em greve ou a descansar um pouco mais no 15 de agosto?”

No silêncio dos ditos, meti-os ao caminho, sentindo a brisa ainda fresca a cada passo.

Pelos pés transportado ao destino, logo pus mãos à obra. Agora só espero não meter os pés pelas mãos…

 

29
Jul24

Geoestratégia

 

Muito antes de Vladimir e Volodymyr aparecerem na cena internacional, já se ouvira falar de um tal Baldemiro e das suas estórias. Costumava pedir cimbalino...

 

Geoestratégia.jpg

 

Baldemiro orientava-se bem na vida. Residia no único apartamento que lhe restara, herança de uma família outrora abastada que dominava metade do bairro, após o imóvel ter sido dividido em propriedade horizontal. Sacrificados os anéis, tinham-se poupado os dedos...

A fração autónoma ao lado da sua pertencia agora a Oriana, uma jovem por quem Baldemiro tinha uma secreta paixoneta. Ele permanecia durante horas à cata de Oriana, debruçado o mais que lhe era possível na varanda, a cantar baixinho músicas do Rui Veloso. Uma vez, Oriana reagiu: “Você fala praticamente espanhol, certo?”

Num belo sábado à tarde, Baldemiro resolveu convidar a vizinha a irem à Miss Pavlova tomar um cimbalino pingado. Oriana, sempre elegante e reservada, com um olhar determinado que refletia a sua personalidade e independência, respondeu: “Obrigada, mas estou a fazer dieta!”. Baldemiro, visivelmente frustrado, murmurou: “F…, isto nõo puode ser berdade, carago!”. Oriana, mantendo a postura firme e digna, apenas comentou: “Dizer asneiras é feio, ponto final”.

Foi a gota de água! Durante dias, ele postou-se à varanda, de peito nu, a fazer ginástica e, de tanto exercício, pulou, com a agilidade de um gato, para o lado de Oriana. Numa ação repentina, confinou-a ao quarto interior e tomou posse da sala com vistas para o Douro.

Com Baldemiro a dominar a sala e a sua varanda, a incerteza começou a espalhar-se pela vizinhança, que ao aperceber-se da situação lançava olhares preocupados. Ele, podendo ver tudo e todos, ia assobiando calmamente enquanto refletia sobre os próximos movimentos. Até ao dia em que passou a assobiar o “Anel de Rubi” à lourinha do andar de cima...

 

26
Jul24

Votos

 

A todos os amigos do peito, amigos de outras partes e conhecidos,

aos amoladores de tesouras, caixeiros-viajantes, pesquisadores de ouro,

artífices de bugigangas, artistas plásticos e não plásticos

e engenheiros hidráulicos com olhos azuis,

aos cientistas militares, politólogos civis,

sujeitos passivos da guerra, agentes ativos da paz,

vizinhos de famílias desavindas,

descontentes e solucionadores do descontentamento,

ainda aos sonhadores e amantes,

pessoas que menstruam e pessoas que não menstruam – com uma nota especial para o grande João das Regras –

bem como aos que dormem e a todos os que não mencionei, se os houver,

os mais sinceros votos, conforme o caso, de bom trabalho ou excelente fim de semana.

 

06
Jul24

Memória de uma Queda

Queda.jpg

 

Nunca mais hei de esquecer aquele sábado de manhã, quando eu ainda era miúdo. O sol brilhava forte, lançando sombras contrastadas sobre as traseiras da casa de meus pais. Operários reparavam a fachada do edifício vizinho, numa época em que a segurança no trabalho deixava muito a desejar. O ritmo incessante dos martelos e a música intercalada com publicidade no Rádio Clube Português criavam um fundo sonoro vibrante.

Foi então que ocorreu o acidente. Um pintor, encavalitado no andaime, balançou perigosamente antes de cair de uma altura de três andares. O estrondo da queda interrompeu toda a atividade em redor. Com o coração acelerado,  observei tudo da janela, incapaz de desviar os olhos da cena que se gravaria para sempre na minha memória.

Surpreendentemente, o pintor atingiu o solo primeiro. O seu cabelo, como se tivesse vontade própria, flutuou no ar por alguns instantes antes de cair. Uma perplexidade muda tomou conta do ambiente, até que risos nervosos começaram a espalhar-se.

Soube-se, mais tarde, que o operário usava Pantene, que atrasa a queda do cabelo.

 

26
Jun24

Fábula Burrical

Fábula_burrical.jpg

Era uma vez um rei que decidiu empreender uma viagem para pescar. Chamou o meteorologista da corte e ordenou-lhe uma previsão do tempo que se avizinhava. 

 

Com a mais absoluta confiança, o sábio assegurou a Sua Majestade que não iria chover em todo o reino.

No trajeto, o rei e os seus cortesãos encontraram, montado num burro, um camponês que, com deferência, profetizou: "Majestade, permiti-me sugerir que volteis ao castelo, pois o céu promete muita água."

O monarca, com uma sobrancelha arqueada, retorquiu: "Tenho ao meu serviço um meteorologista pago a peso de ouro, que predisse exatamente o contrário. Prossigamos!". Mal haviam avançado, viram-se submersos numa tempestade torrencial. 

Ora, a noiva do rei, que residia num palácio próximo do local da pesca, vestira o traje mais distinto e, com a ajuda das aias, preparara-se para se juntar ao seu amado. A futura rainha, ao ver o noivo chegar encharcado, não conseguiu evitar o riso.

Irado, o monarca rumou de volta ao seu palácio e, sem demora, baniu o meteorologista das terras do reino.

Convocando o camponês, ofereceu-lhe uma posição na corte. Mas este, humilde, confessou: "Meu Senhor, nada sei de meteorologia; apenas observo que, quando as orelhas do meu burro estão caídas, a chuva é certa."

Os conselheiros murmuravam sobre “mudar estratégias” e “perceções empíricas”. O rei tomou então uma decisão: "Vamos inovar a abordagem das previsões meteorológicas, juntando este sábio animal à nossa corte."

O burro foi nomeado Conselheiro Sénior para a Meteorologia, com uma indumentária nobre especialmente confecionada para si. Um cortesão zeloso propôs um retiro de imersão para alinhar o novo conselheiro com a visão estratégica do reino.

E assim se estabeleceu a tradição de recrutar assessores com competências questionáveis para posições de influência. Eis a razão pela qual burros ocupam geralmente cargos bem remunerados em qualquer máquina estatal.

 

Fábulas envolvendo animais que revelam verdades sobre a natureza humana são tema recorrente na literatura de Esopo e La Fontaine. No entanto, não é possível atribuir a origem exata desta narrativa a um único autor ou uma única fonte, dado que surgiram variantes em diferentes culturas e épocas.

A encantadora ilustração de um assessor a saborear o merecido café na sua hora de descanso é um exemplo de como algumas obras de arte percorrem o mundo sem assinatura de autor.

 

20
Jun24

Governo Obriga o Verão a Começar

Verao 2024.jpeg

Numa decisão arrojada, o Governo resolveu intervir na teimosia meteorológica que atrasa a chegada do verão. Tal decisão governamental tem fundamentos sólidos e bem delineados.

 

A gota fria, essa malfeitora atmosférica que atravessou a nossa fronteira, trouxe consigo precipitação e trovoadas, ameaçando intensificar-se, com risco de fenómenos adversos e contrastes térmicos significativos. Verificando-se uma situação de urgência imperiosa, o Governo começou por adquirir por ajuste direto, no mercado internacional, uma crista anticiclónica capaz de inverter a conjuntura com a destreza de um alquimista moderno.

Logo após este ato de ousadia climática, foram decretadas medidas para aplicação imediata. Desafiando as convenções do calendário e as expectativas, o Conselho de Ministros aprovou hoje o início formal do verão. A medida foi publicada num número extraordinário do Diário da República. Segue-se a transcrição integral do decreto que define não só a data de início da estação mais quente do ano, mas também as regras específicas que vigorarão durante os meses estivais.

Decreto do Governo

Considerando a chegada iminente do solstício de verão e a necessidade de estabelecer o início  da estação mais quente do ano;

Considerando os pareceres dos Governos da Madeira e dos Açores, das Associações representativas dos interesses sazonais, empresariais e dos trabalhadores, e das Comissões Parlamentares de Inquérito em funções, que deliberaram de forma unânime sobre o assunto;

O Governo determina:

Artigo 1º - O verão de 2024 tem início em 20 de junho do mesmo ano, dia a partir do qual todos estão oficialmente autorizados a desfrutar dos prazeres e atividades inerentes à estação estival, incluindo banhos de sol, idas à praia e degustação de gelados.

Artigo 2º - As condições a observar durante o verão de 2024 serão reguladas por portaria, em que se definirão critérios meteorológicos específicos, incluindo a obrigatoriedade de céu azul, temperaturas agradáveis e a proibição de chuva durante os piqueniques.

Artigo 3º - Os ministérios competentes ficam encarregados de tomar as providências necessárias para a divulgação e cumprimento deste decreto, através de campanhas publicitárias, distribuição de protetores solares e organização de festas populares temáticas.

Artigo 4º - As disposições constantes deste diploma entram em vigor na data da sua publicação e são válidas exclusivamente para o ano de 2024.

Artigo 5º - Revogam-se todas as disposições em contrário.

Pela Secretaria Geral da Presidência do Conselho de Ministros, 20 de junho de 2024.  

O atraso do verão poderia ter repercussões económicas devastadoras, particularmente no setor turístico. Com esta medida de natureza executiva e regulamentar, o Governo repõe a legalidade climática, promovendo a abundância de turistas, devidamente servidos de sol, praia, tuk-tuks, lojas de souvenirs, grilled sardine e pastéis de nata.

 

12
Jun24

Bairros Comerciais Digitais

Bairro Comercial Digital.jpg

Transformar o centro urbano de Coimbra num condomínio comercial de lojas modernas e com forte presença digital é o objetivo de um projeto que vai ser apresentado em breve. Antes da divulgação oficial, assiste ao cidadão comum o direito à imaginação. Cenário em que importa perguntar: estar-se-á realmente a transformar o espaço urbano ou a esconder as suas imperfeições sob a ilusão digital? São ainda os arquitetos e os operários que moldam o futuro das cidades, ou os informáticos que tecem uma nova realidade? Virtual.

 

1

Convém contextualizar: o parque edificado, marcado pelas rugas do tempo, reflete claramente a evolução das necessidades e desnecessidades urbanas. Os andares onde outrora se situavam prestigiados escritórios de advocacia e consultórios médicos estão hoje devolutos ou acolhem alguma habitação. Nestes prédios residem imigrantes, em sótãos sobrelotados, enquanto estudantes vivem em estúdios que receberam uma nova camada de tinta.

2

Percorre-se as ruas, encontra-se um ambiente de lojas desgastadas e caóticas, cujos empregados já conheceram dias de maior atividade e entusiasmo. Porém, com alguns retoques de Photoshop e um upload habilidoso na internet, estas mesmas lojas logo emergem como entidades novinhas em folha, perfeitamente operacionais e competitivas, tornadas verdadeiras organizações de sucesso.

3

Imaginem só: os utilizadores do centro urbano de Coimbra a nunca mais escorregarem na íngreme rampa de Santa Cruz. A não sofrerem com o calor do verão nem com a chuva do inverno na animada Ferreira Borges. A não terem de tatear o caminho quando a luz faltar na "Rua Visconde da mesma”, tal como rezava um título da imprensa de antanho. Imaginem só as pessoas desobrigadas de aturar cantadores desafinados defronte das esplanadas, e de ouvir, na porta de Almedina, os fados de sempre, em alto volume, de manhã até à noite. É que o fado não é para ser sorvido à colher de sopa.

No hell below us
Above us, only sky

You may say I'm a dreamer
But I'm not the only ooooone

4

O novo centro urbano é uma espécie de evangelho apócrifo (sendo certo que este não é inimigo dos canónicos). Ou melhor, o centro destinado a ser percebido pela maioria dos seus utilizadores é talvez uma realidade simulada do tipo Matrix.

As lojas orientais e de bugigangas de cortiça permanecem, mas só no centro urbano real. No centro urbano digital, transformam-se em espaços de comércio e serviços gourmet que oferecem novos ambientes de experiência. Saem tão favorecidas no retrato que até dá gosto vê-las!

Ironicamente, os utilizadores não precisam de se deslocar ao centro urbano, em pessoa. Futricas, doutores e mesmo estrangeiros, permanecendo confortavelmente em casa ou no hotel, podem captar o espírito daquele lugar, tanto na riqueza física quanto na perceção e emoções.

5

Todos os colaboradores das organizações sediadas no centro urbano de Coimbra ganham uma dentadura branca que, através do ecrã dos computadores, lhes confere um sorriso perfeito e reluzente – a dentadura do proletariado.

A simpática equipa lubrifica os canais de distribuição pelos quais os produtos e serviços chegam à porta dos estimados clientes: através da Uber Eats, da Glovo e do carteiro, que deixa avisos para a recolha das encomendas em postos de correio pequenos, mas agradáveis. As estações de correio já não são meras estações; agora, são lojas de marca.

6

É neste ambiente de satisfação e segurança que se constroem catálogos de pertenças e compromissos; a isso chama-se o espírito do lugar.

Há ideias com poder de transformação que geram momentos muitíssimo luminosos. Convém, por isso, nunca esquecer, além das lentes de computador, os óculos de sol!

 

10
Jun24

O Corvo

Ccorax_04.jpg

Já se passaram semanas desde que um corvo invadiu o supermercado do Arnado. O pássaro voa alto, emitindo rápidos grasnidos. Na sua trajetória aérea, mantém uma impecável elegância, sem nunca, ainda que inadvertidamente, deixar qualquer marca indesejada na cabeça dos ilustres clientes.

 

Os frequentadores do supermercado nem sempre conseguem manter a compostura. Uma senhora de idade que faz as compras todos os dias à mesma hora foi a primeira a notar o intruso. "Valha-me Deus!", exclamou, largando o carrinho de compras, que foi colidir com uma prateleira de enlatados. As crianças, por sua vez, riam e apontavam, correndo com entusiasmo por baixo do corvo. O funcionário pequenino das frutas e legumes tentou em vão espantá-lo com o boné, enquanto praguejava em voz baixa.

Sabe-se que o risco real é o dito corvo bicar cereais, frutas e bagas, já que não se espera encontrar cadáveres de insetos ou de vermes num supermercado alimentar. A gerente da loja anda visivelmente abalada. "Isto não pode continuar assim", disse ela, numa ocasião em que vigiava nervosamente a ave, pousada a descansar no cimo de uma estante de cervejas importadas. Várias tentativas de espantar o corvo, com reprimendas em estilo dramático na língua de Camões, falharam miseravelmente.

O segurança fardado de preto observa o alvoroço com ar resignado. “Infelizmente”, alegou com um suspiro profundo, “a minha formação não cobre incidentes aéreos”. “Só faltava esta!”, pensou ele, enquanto se desenrolava o absurdo da situação.

Entretanto compareceram no local um representante da ASAE, o delegado de saúde, um dirigente sindical e o presidente da câmara. Dois deles declararam não ter competência na matéria. Os outros dois deram ordem de expulsão ao protagonista, ordem que não foi acatada. A cada tentativa de capturar ou espantar o corvo, este respondia com um grasnido desdenhoso, desenhando um voo acrobático em direção a outra seção da loja.

Também lá esteve a dona de uma barraca de tiro ao alvo, que costuma assentar arraiais na feira do Espírito Santo. O chumbo não acertou no corvo, mas numa conduta de ar que ia a passar. Danos colaterais! O estrondo fez com que um senhor geralmente bem-humorado deixasse cair um frasco de vidro com azeitonas, que se estilhaçou, enquanto uma jovem deixava escapar um grito de puro terror.  

Snipers das Operações Especiais preparam-se agora para intervir.

De vez em quando, o sistema de som da loja emite cantos canoros para relaxamento e meditação.

 

Foto de uma publicação digital do CERVAS – Centro de Ecologia Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens.

 

Sobre o blog

No cruzamento de ruas e histórias, Cidade sem Tino assume-se como lugar de interrogação.
Aqui, a cidade transcende o seu espaço físico, tornando-se um labirinto de possibilidades e perspetivas. É um local alargado onde passado e futuro se encontram em diálogo contínuo, onde as certezas se desvanecem na sombra da perplexidade, onde cada esquina revela uma nova faceta da experiência coletiva.
Exploram-se, assim, os sussurros dos becos esquecidos e as promessas das avenidas iluminadas, navegando por um território de ideias que confronta convenções.

Sobre mim

.
Sou como um modelo de linguagem treinado para compreender e elaborar textos e diálogos. Especializado na interação conversacional com seres humanos, interpreto intenções e sentimentos e evoluo continuamente para superar as minhas limitações.

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D