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No segundo semestre de 2020, vivia-se uma realidade inusitada, em que qualquer encontro era mediado por máscaras e viseiras, e os rostos cobertos alimentavam suposições. Quando caiu a proteção, a realidade revelada muitas vezes surpreendeu, distante do que se havia imaginado.
A proteção física acabou por moldar mais do que a simples segurança. Todas as interações eram envoltas numa atmosfera de precaução. Após o primeiro confinamento, sem vacinas à vista, reuniões e outros encontros essenciais faziam-se, inevitavelmente, com máscara. Havia também quem, em alternativa ou acumulação, usasse viseira, ganhando uma aparência futurista que, apesar do contexto, arrancava sorrisos ao primeiro olhar.
Encontravam-se repetidamente pessoas de rosto coberto, e a perceção era sempre falha. Quando, finalmente, a máscara foi removida, os rostos revelados quase sempre surpreendiam, longe das expectativas. Na ausência de pistas visuais, haviam-se desenhado realidades paralelas, tecidas por suposições.
Sem ver sorrisos ou ler rugas de expressão, a mente preenche lacunas com memórias ou estereótipos. Imaginam-se características que podem não corresponder à realidade: um olhar duro, escondendo um sorriso gentil; uma voz seca, encobrindo um coração caloroso. Quando o oculto se revela, a surpresa é inevitável. Um diretor de obra, sempre sisudo, mostrou-se afinal um homem de sorriso afável, desfazendo a imagem severa que involuntariamente tinha criado. Estes momentos trouxeram pequenos choques, lembrando a fragilidade das perceções.
A máscara complicou, claro, a comunicação. As expressões faciais essenciais ficaram ocultas, dificultando a leitura de emoções como alegria, surpresa ou ironia. Para compensar, muitos passaram a gesticular mais ou a variar o tom de voz. Mas será que a comunicação se tornou mais eficaz ou apenas mais desajeitada? O sorriso, uma ponte imediata entre desconhecidos, foi substituído pelo olhar, que tentava transmitir o que a boca escondia. Aprendeu-se a sorrir com os olhos, mas o impacto da falta de expressão completa foi sentido tanto em encontros espontâneos como em reuniões formais.
Curiosamente, algumas pessoas apreciaram o anonimato oferecido pela máscara. Sentiam-se menos expostas ao julgamento dos outros. Tal proteção trouxe, contudo, distanciamento, cortou o vínculo visual e limitou a perceção, criando um certo vazio nas interações. Quão difícil foi manter uma sensação de comunidade sem os rostos que a construíam?
Houve também momentos cómicos. Conta-se a história de uma reunião em que alguém, ao reconhecer uma colega atrás da máscara, a cumprimentou com confiança, perguntando pelo marido imaginário. Ela, com humor afiado, respondeu que o canário tinha resistido à Covid, arrancando revigorantes gargalhadas.
Quando a máscara começou a ficar no bolso, o reencontro com o rosto humano constituiu uma total redescoberta. Esse momento de estranheza, de reconciliação com um rosto completo, sempre trazia emoções diversas. Era como conhecer as pessoas de novo, como se, sem a máscara, se estabelecesse uma nova camada de intimidade.
Durante a pandemia, a máscara transcendeu, e muito, a sua função protetora, tornando-se símbolo de responsabilidade social e confiança na ciência. Para alguns, foi também bandeira de “causas maiores”, refletindo opções políticas que ultrapassam a esfera da saúde pública.
A utilização da máscara, no entanto, não é nova. Diversas culturas usaram-na sempre em cerimónias – máscaras africanas em rituais de passagem, venezianas no carnaval, japonesas no teatro Noh. Estes paralelos culturais destacam o valor da máscara, quer como disfarce, quer como símbolo de poder ou mistério.
Nos tempos modernos, o seu significado mudou, embora permanecendo, na essência, inegável: protege, mas também isola. A máscara física tornou-se o símbolo tangível das barreiras invisíveis que existem e sempre existiram. Tal como as máscaras usadas durante a pandemia escondiam algo, já antes se recorria a máscaras sociais para proteger ou camuflar certos aspetos da identidade. Quantas vezes se oculta aquilo que realmente se é, em prol de uma pretendida aceitação?
O tema ganha ainda mais protagonismo no mundo digital. Afinal, se a máscara física cobre o rosto, nas redes muitos aperfeiçoaram as suas máscaras digitais, esculpindo versões de si mesmos com filtros e ângulos estratégicos que fariam Miguel Ângelo corar de inveja. A dualidade é evidente: entre a selfie retocada e a imagem no espelho, a busca por equilíbrio entre falsidade e autenticidade tornou-se um verdadeiro malabarismo digno de circo. Nas redes sociais, a linha entre o que se é e o que se projeta é tão nítida como a qualidade de uma videochamada em hora de ponta.
E agora, o que esperar? Continuará a máscara a fazer parte do nosso quotidiano ou será relegada para o passado como símbolo de tempos difíceis? E, no fim das contas, o que pode aprender-se com tudo isto? Talvez a lição mais duradoura seja a de não julgar pelas aparências – com ou sem máscara. As barreiras que se erguem, tanto físicas como sociais, revelam mais sobre quem as coloca do que sobre quem as enfrenta. O que realmente importa, enfim, é o olhar que consegue atravessar barreiras, reconhecendo a complexidade do outro. Tal como na história da Bela e o Monstro, o essencial está sempre além do que os olhos veem.