Depois da Ficção: Desmontar o Mundo
Num ecrã luminoso, seres de pele azul movem-se entre árvores vivas e raízes que falam em silêncio. Vivem ligados à terra e à memória. Cada gesto obedece a um código antigo. Quando se colhe uma presa, há gesto. Há contenção. Há reconhecimento.
Cá fora, a realidade arde – fragmentada em notícias, amputada de linguagem, indiferente à respiração do mundo.
Numa janela do ecrã, pessoas em filas densas seguem em marcha lenta. Levam trouxas à cabeça e filhos ao colo. Vão para sul, para longe do fogo. Diz-se: “zona segura”. Depois bombardeia-se a zona segura. Em seguida, muda-se o nome. Não se muda a destruição.
Entre os dois mundos, a turbulência faz tremer os olhos de quem olha para o ecrã. Há que apertar o cinto. Os altifalantes sugerem calma. Entretanto, lá fora, uma cidade desaba.
Quando o céu estabiliza, a refeição chega.
– What would you like to drink, Sir?
A civilização mantém-se.
Na ficção, as florestas acendem-se à noite. Cada árvore guarda o vestígio de quem passou, de quem caiu, de quem dançou. Os mortos são sementes. A dor tem lugar. No planeta imaginado, até a violência obedece a uma ética.
Na realidade, a morte multiplica-se sem nome, sem tempo para enterros. Mata-se rápido, limpa-se o que resta, apaga-se a criança do registo. Diz-se “colateral”, como se a morte fosse um erro técnico, não uma escolha.
A linguagem tornou-se arma. “Operação”, “alvo”, “evacuação”. Não se diz: destruição. Não se diz: expulsão. Não se diz: genocídio. Não se diz: lucro.
As guerras do presente travam-se com mapas de minerais na mão. A promessa de apoio transforma-se em fatura. Terras raras em troca do direito de resistir. Rios ocupados em troca de paz artificial. A cartografia já não desenha cidades, caminhos e pontes – desenha zonas de extração. A Ucrânia como armazém. Gaza como postal turístico.
Primeiro esvazia-se a vida. Depois inaugura-se o negócio. Cidades em ruínas reimaginadas como praias temáticas. Desertificação com piscina.
Para que a máquina funcione, é preciso destravar o sistema. A democracia, com os seus processos lentos, atrapalha. A justiça atrasa. O jornalismo denuncia. As ONG incomodam. As ciências humanas pensam demais. Por isso, há que desmontar tudo. Um corte de financiamento aqui, um ataque à credibilidade acolá, uma nova ordem, aceite sem resistência por um sistema exausto.
Os novos construtores de mundos falam como engenheiros. Um povo pode ser silenciado – como ruído de fundo. A floresta, apagada do mapa. Substituída por servidores. O mar, repartido em lotes turísticos. Como se a paisagem existisse apenas para caber numa certidão do registo predial.
Tudo o que vive demais – fala demais, recorda demais, sangra demais – é uma falha de sistema.
Chamam-lhe soberania. Eficiência. Inovação. Mas inovação sem ética é apenas colapso – com melhor design. O futuro que se constrói assim é um museu interativo da indiferença: bonito por fora, vazio por dentro.
Contudo, há ainda quem recuse a equação. Quem diga: nem tudo pode ser codificado. Nem tudo pode ser comprado. Nem tudo pode ser sacrificado em nome da máquina e do medo.
Esses – os que escrevem, os que documentam, os que choram, mesmo quando não é em voz alta – são os próximos silenciados.
No ecrã, as árvores fecham-se sobre os corpos. Guardam-nos. Lá fora, as imagens ardem antes de chegar ao fim. A memória, agora, tem prazo curto. E os vivos continuam a mover-se, trouxa à cabeça, em direção a lugar nenhum.

Imagem: “Avatar” (2009), realização de James Cameron. Imagem promocional – © 20th Century Studios / Lightstorm Entertainment.
Cameron imaginou um mundo onde os mortos têm memória e a dor tem lugar. E recusou viver num onde isso já não acontece.
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