Crónica de um Saque Anunciado
Sobre VHS, soberania reciclada e a diplomacia como arte performativa com brindes no fim
Ronald Drunke preparou o encontro com o requinte cínico de quem serve História requentada como jantar de Estado. O alvo: Luís Monotone, primeiro-ministro fluente na arte de evitar o compromisso, enviado a Drunke City DC para “reforçar laços transatlânticos” e, se possível, evitar a aplicação da tarifa de 500% à exportação de mexilhão atlântico e túbaros de porco para a Grande Amérika.
Na Sala Ovoide, sob lustres pesados e entre cadeirões imponentes, o Presidente mandou apagar as luzes. Uma tela desceu com a solenidade de uma aula do 2.º ciclo. No ecrã surgiu um registo tremelicante em VHS — o passado a preto e branco, tingido de vermelho por zelo digital. Ruídos de megafone. Depois, a gravação explodiu:
— O capitalismo apodrece como carne ao sol. Mas o povo levanta-se — não pede, ocupa!
Um revolucionário de bigode e patilhas longas, camisa aos quadrados, berrava com convicção embebida em vinagre ideológico:
— Os lacaios do imperialismo saqueiam o planeta numa disputa cega.
Monotone empalideceu. Tentou sorrir, mas o suor revelou o embaraço de quem estava a ser colado, por pura má-fé, a um passado que não era o seu.
O vídeo saltou para uma cena recente: uma arruada. Alguém de fato escuro, com a gola do casaco a boiar bem acima do colarinho da camisa — o mesmo visual de Monotone naquele momento. O discurso desdobrava-se numa frase carregada de intenção e leve de sentido.
— Ãontem foi ãotem. Hoijze, nósz olhamosz… nósz olhamosz para cada criançza que nasze…
Nesse instante, o sistema de tradução automática — protótipo da Zylon Husk 3000™, calibrado com uma base de dados etimológica caótica e sotaque texano — entrou em ação:
— Yesturday was the pastest. Today, we… we lookz at each baby that bornifies…
Drunke fixou o ecrã. Depois olhou para Monotone. A pausa foi curta — nem precisava de mais.
— Recognize anyone? — perguntou. — So… is this your Minister of Philosophy?
Virou-se para JD Convex, que já abria a pasta com o memorando.
— Give us Madeira — pediu, com a boquinha ensaiada de quem pede pouco e leva tudo. — And maybe the Azores. And those… how you say? Berlengas?
Monotone ainda tentou resgatar a compostura, explicando, com sotaque polido da Linha:
— Nós olhamos para cada cidadão com o compromisso de lhe proporcionar…
Drunke levantou a mão. A frase morreu. Tal como a soberania.
JD Convex pousou o “Memorando de Partilha Geoestratégica” à frente dele. Tanto quanto se sabe, Monotone anuiu. Uma caneta grossa terá confirmado.
Foi conduzido até à porta, com um sorriso amarelo e um saco de recuerdos: boné, autocolante e um folheto satírico, todos com frases sobre amizade, parcerias e maoismo gourmet.
À saída, Monotone deteve-se por um instante. Depois, baixou os olhos para o conteúdo do saco e murmurou, quase só para si:
— Não era isto que nós sonhámos.
Drunke compôs um sorriso postiço antes de declarar, sem pressa:
— We’ll keep the islands safe.
Para que não digam que ninguém avisou: 🎵 Zeca Afonso — “Os Vampiros” (Vimeo)