Acidente de Trabalho
Dizem que Gaudí morreu como viveu: de olhos postos na Sagrada Família e a cabeça nas nuvens.

Barcelona, junho de 1926. O trânsito era escasso, os elétricos deslizavam devagar, e Antoni Gaudí, como de costume, parecia pertencer a outro tempo — barba de profeta cansado, roupa desalinhada de monge da arquitetura e o olhar perdido no alto.
Nessa manhã, saiu cedo do seu pequeno quarto-oficina, onde dormia entre plantas, maquetas e pó de pedra. Ia rever mais um pormenor da sua obsessão: talvez uma gárgula com escoliose… ou uma curva inspirada num caracol visto no mercado. Caminhava devagar, de olhos erguidos, com a alma hipotecada ao andar celestial da sua obra.
E, claro, atravessou a rua.
O elétrico vinha tranquilo, mas Gaudí já estava longe — com os pensamentos adiantados até 2072. Ou lá para quando a catedral estiver, um dia, concluída.
O arquiteto, claro, não viu o veículo. O veículo também não viu nele um visionário. Apenas um velho mal vestido a meter-se à frente.
Pumba.
Simples. Trágico. E, como quase todas as ironias urbanas, ridiculamente simbólico. O homem que redesenhou o céu de Barcelona, ceifado por um banal detalhe urbano: o transporte público.
Ninguém o reconheceu. Com a barba por fazer, os bolsos vazios e o olhar perdido, parecia-se mais com um indigente do que com o arquiteto que reinventara a silhueta da cidade. Levaram-no para o hospital dos pobres, onde ficou dias sem nome — como se a própria Barcelona tivesse demorado a perceber que engolira o seu criador.
Há nisto uma certa poesia cruel. A obra tornou-se tão monumental que eclipsou o homem. Como um visionário engolido pelo próprio sonho em pedra.
Alguns vizinhos diziam que ele falava com as pedras. Talvez falasse. Talvez até elas lhe tenham respondido naquele instante final — como uma curva torta refletida no chão. Ou uma sombra que não batia certo.
Hoje, os turistas passam por ali em fila indiana, telemóvel em riste. Todos de olhos postos nas torres. Ninguém olha para o chão onde ele caiu. A cena repete-se todos os dias — a devoção distraída dos que olham sem ver.
A Sagrada Família, essa, continua em obras. Vivamente inacabada. Como se tivesse vergonha de acabar sem Gaudí. Talvez ele tenha mesmo deixado instruções secretas para manter o estaleiro aberto até ao Juízo Final.
Não por vaidade — mas porque há sonhos que não cabem no calendário.
Foto: German Documentation Center for Art History – Marburg Picture Index. Barcelona, anos 20. A Sagrada Família como sempre: em obras. Gaudí já não voltaria a atravessar a rua.
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