A Roda e o Vento
Em tempos em que as linhas entre o sagrado e o absurdo se tornam cada vez mais ténues, a ideia de reencarnação ganha novos contornos.
O Testamento
Num mosteiro suspenso nas alturas rarefeitas de Dharamsala, sob uma luz dourada filtrada por bandeiras de oração que dançam com o vento ancestral, o 14.º Dalai Lama, com olhos de paz profunda e voz como pedra antiga, dirige-se ao mundo:
— Quando eu partir, voltarei. Não nascerei onde me esperam. Serei homem — mas não moldado. Livre da mão do império. Leiam os sinais com pureza. E não temam o desvio.
A China reage com firmeza ritual, prometendo conduzir o processo com os seus protocolos apertados como algemas. Mas o mundo escuta. E os monges, em segredo, começam a preparar o inevitável.
O Vazio
A morte do Dalai Lama não tem som. Um frio denso espalha-se pelas planícies e vales.
Convocam-se oráculos. Rituais milenares cruzam os corredores dos templos. Os monges estudam estrelas, fragmentos de sonhos, deslocações de energia.
O oráculo murmura três sinais: silêncio denso, reflexo ausente, orgulho inato.
Dharamsala transforma-se num centro de vigília espiritual. Abrem-se arquivos ancestrais com luvas brancas. Mapas cármicos sobrepõem-se como mandalas cifradas.
Forma-se uma comitiva sagrada: lamas experientes, astrólogos, linguistas, noviços com relíquias ao peito, olhos como lanternas.
Partem para os Himalaias, os Andes, os Alpes, os Apalaches — as periferias invisíveis e as metrópoles onde a alma se esconde sob o betão e o consumo. A sua presença é quase invisível — e, ainda assim, imparável.
Consultam calendários lunares, escutam parteiras, analisam nascimentos coincidentes com o último suspiro do mestre.
Em cada casa com aura suspeita, oferecem os objetos — um sino, uma tigela, um colar de madeira antiga — para acordar a memória. Procuram gestos automáticos, olhos que reconhecem o invisível, dedos que hesitam antes de escolher.
Vivem meses entre malas feitas e desfeitas, silêncios e mantras. A imprensa especula. O povo sussurra. Mas nada é certo.
A reencarnação escapa. As visões contradizem-se. Instala-se uma angústia sem nome, como se o novo Dalai Lama não quisesse ser encontrado. Ou pior: como se estivesse deliberadamente fora do mapa.
A Revelação
Nos subúrbios de um continente distraído, uma mulher comenta com os vizinhos que o filho é... estranho.
Fala com palavras de homem feito. Corrige adultos. Dá ordens a quem não o escuta. Detesta jogos que não impliquem autoridade. Promete grandeza. Exige reverência. Nunca pede desculpa.
E passa muito tempo ao espelho, a ensaiar poses para o olhar dos outros.
Certa vez, proclama:
— O mundo precisa de mim. Mas não está pronto.
Quando os monges chegam, são recebidos por brinquedos alinhados com rigor militar. De uma bolsa retiram os objetos antigos, que dispõem sobre uma mesa de vidro. O menino aproxima-se, olha, toca, depois murmura:
— That was mine! The bell is off-key. So are you.
Silêncio absoluto. Um dos monges fecha os olhos, como se escutasse um sinal. Outro anota algo com mãos trémulas — talvez iluminação, talvez cobiça.
O menino tem quatro anos. Rechunchudo. Pele clara. Uma boquinha quadrada, que articula frases simples com a precisão de quem acredita que cada palavra sua é lei. O olhar é tão firme quanto altivo. Usa fatinho azul escuro, gravata vermelha absurda, a roçar-lhe os joelhos — como se fosse emprestada — e penteado cuidadosamente esculpido num laranja improvável, desafiando o vento, o karma e o bom senso.
O ciclo fecha-se. A roda do renascimento girou… e tropeçou. O universo riu-se. Não foi de alegria.
Nota: A mandala que abre este post é um símbolo visual do universo e da impermanência, usado em tradições budistas. Representa ciclos de existência — perfeitos à vista, mas frágeis no centro. Tal como a história que acaba de se fechar.