Cidade com Tino, Cidade sem Tino

Hoje é o Dia Mundial das Cidades.
Celebram-se todas: as que ainda têm algum tino, as que fingem que têm, e aquelas que o perderam na rotunda antes da saída certa. Celebram-se as cidades reais — e as imaginadas. As que resistem ao colapso e as que já desistiram de o disfarçar. Muitas com sensores, planos estratégicos e um vocabulário tão bonito quanto vago.
No virar do século XIX para o XX, a cidade era milagre: tijolo e esperança. Um teto com salário, contra o trabalho de sol a sol. Uma troca: menos galinhas, mais fábricas. A urbe prometia abrigo, trabalho e, com alguma sorte, um par de sapatos.
Mas o século XXI mudou o enredo. A cidade industrial desmaterializou-se. Em vez de aço, produz reuniões. Em vez de bens, plataformas. Em vez de progresso, “soluções” — muitas vezes para problemas que ninguém sabia sequer que existiam.
E cresceu. Em 2008, mais de metade da humanidade já vivia em cidades. Em 2050, serão dois terços — cerca de 6,3 mil milhões de pessoas a partilhar o mesmo congestionamento, o mesmo ar condicionado e, talvez, a mesma esperança.
A cidade é uma teia: de transporte, de água, de eletricidade, de dados. Sobre estas redes, erguem-se edifícios — uns com alma, outros com mais vidro do que dignidade. E dentro deles? Pessoas. Ligadas por tecnologia, mas cada vez mais sós. Entre redes técnicas e redes sociais, sobra cada vez menos espaço para a rede invisível da convivência.
Multiplicam-se as cidades ditas inteligentes. Há sensores no lixo, no trânsito, na paciência dos habitantes. Mas se a tecnologia não servir para reduzir desigualdades, limitamo-nos a instalar soluções digitais onde faltam soluções humanas.
E quanto à arquitetura? Nalguns lugares, sonha-se com um regresso ao clássico — ou pior: a um neoclassicismo de catálogo. Fala-se em virtude e proporção, mas o resultado é mais próximo do kitsch com diploma. Há quem imponha que edifícios públicos pareçam templos gregos — como se uma fachada de Ictinos ou de Vitrúvio redimisse uma cidade desigual.
Mas o tempo mudou de língua. Nem em Atenas se fala grego clássico. Nem em Roma se ouve latim.
As cidades são palcos — da economia, do lazer, da mobilidade… e também da exclusão. E se a cidade é um palco, urge escutar quem vive nos bastidores: quem caminha devagar, quem fala baixo, quem não aparece nos mapas.
Uma cidade com tino coloca as pessoas no centro — não só os dados. Não confunde cimento com civilização, nem tecnologia com justiça.
As cidades estão a tornar-se digitais. Que sejam também humanas, verdes — e radicalmente decentes.
Foto de Jeswin Thomas em Unsplash
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