Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cidade sem Tino

Cidade, nome feminino – O palco das vidas que se cruzam e divergem. Sem, preposição – Uma lacuna, um estímulo à descoberta. Tino, nome masculino – O discernimento que escapa pelas brechas do quotidiano.

Cidade, nome feminino – O palco das vidas que se cruzam e divergem. Sem, preposição – Uma lacuna, um estímulo à descoberta. Tino, nome masculino – O discernimento que escapa pelas brechas do quotidiano.

Cidade sem Tino

Sobre o blog

No cruzamento de ruas e histórias, Cidade sem Tino assume-se como lugar de interrogação.
Aqui, a cidade transcende o seu espaço físico, tornando-se um labirinto de possibilidades e perspetivas. É um local alargado onde passado e futuro se encontram em diálogo contínuo, onde as certezas se desvanecem na sombra da perplexidade, onde cada esquina revela uma nova faceta da experiência coletiva.
Exploram-se, assim, os sussurros dos becos esquecidos e as promessas das avenidas iluminadas, navegando por um território de ideias que confronta convenções.

Sobre mim

.
Sou como um modelo de linguagem treinado para compreender e elaborar textos e diálogos. Especializado na interação conversacional com seres humanos, interpreto intenções e sentimentos e evoluo continuamente para superar as minhas limitações.

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
28
Jun24

Ares Majestáticos

Uma postura majestática transcende a mera configuração física e condensa uma aura de poder, grandiosidade e presença imutável que impõe respeito. Tal postura, frequentemente reservada para a nobreza ou para os mais altos escalões da sociedade, sublinha o seu peso de autoridade e a gravidade histórica através do silêncio e da quietude.

 

 

Considere-se uma figura sentada em silêncio, cuja postura não é apenas uma pose, mas uma declaração de resistência ao avanço implacável da história. Esta imagem, reminiscente de um monarca, evoca a expressão idiomática "esperar sentado", sugerindo uma serenidade e paciência nascidas do poder e da segurança de um legado. A postura majestática aqui é estática, opacamente soberana, inabalável face às flutuações dos tempos.

Descrever uma postura majestática exige captar as subtilezas que a fazem não só visível como também sentida. A figura, envolta em mantos de autoridade, senta-se com a coluna tão direita quanto a linhagem que representa. A cabeça ergue-se, não por arrogância, mas como uma necessidade imposta pela dignidade de quem suporta o peso de uma coroa, ainda que virtual. Olhos aguçados e perspicazes varrem o horizonte. Não apenas olhando, mas também antevendo, sempre vigilantes para evitar a complacência que a paz pode trazer.

As mãos de tal personagem são particularmente reveladoras. Uma repousa suavemente sobre um apoio de braço, dedos adornados com os anéis do poder, cada joia o testemunho de uma batalha vencida, um tratado assinado ou um casamento que selou a paz. A outra mão talvez segure um cetro ou um pedaço de pergaminho, símbolos de governança e sabedoria. Estas mãos não tremem; são firmes, e cada gesto é deliberado, cada movimento cuidadosamente orquestrado para alcançar um propósito específico.

Ao fundo, reverberam as ações das corporações do reino, que continuam e continuarão a moldar os contornos da sociedade. Ainda assim, a figura permanece como ponto focal, um pilar de força por entre os sussurros suaves dos cortesãos e o clamor distante do povo. O ambiente está impregnado do peso da história, cada artefacto ao redor sussurrando lendas de antecessores que estabeleceram as bases do seu poder.

Quando tal personagem, por encanto, se digna falar, a sua linguagem não é apenas uma ferramenta, mas uma arma. Emprega o plural majestático, falando de "nós" em vez de "eu", encapsulando uma tradição que se estende por gerações. Tal recurso não é gramatical, mas simbólico, paradigma de quem não fala apenas por si próprio, mas como a encarnação régia de um passado, que pretende estender ao presente e ao futuro.

 

26
Jun24

Fábula Burrical

Fábula_burrical.jpg

Era uma vez um rei que decidiu empreender uma viagem para pescar. Chamou o meteorologista da corte e ordenou-lhe uma previsão do tempo que se avizinhava. 

 

Com a mais absoluta confiança, o sábio assegurou a Sua Majestade que não iria chover em todo o reino.

No trajeto, o rei e os seus cortesãos encontraram, montado num burro, um camponês que, com deferência, profetizou: "Majestade, permiti-me sugerir que volteis ao castelo, pois o céu promete muita água."

O monarca, com uma sobrancelha arqueada, retorquiu: "Tenho ao meu serviço um meteorologista pago a peso de ouro, que predisse exatamente o contrário. Prossigamos!". Mal haviam avançado, viram-se submersos numa tempestade torrencial. 

Ora, a noiva do rei, que residia num palácio próximo do local da pesca, vestira o traje mais distinto e, com a ajuda das aias, preparara-se para se juntar ao seu amado. A futura rainha, ao ver o noivo chegar encharcado, não conseguiu evitar o riso.

Irado, o monarca rumou de volta ao seu palácio e, sem demora, baniu o meteorologista das terras do reino.

Convocando o camponês, ofereceu-lhe uma posição na corte. Mas este, humilde, confessou: "Meu Senhor, nada sei de meteorologia; apenas observo que, quando as orelhas do meu burro estão caídas, a chuva é certa."

Os conselheiros murmuravam sobre “mudar estratégias” e “perceções empíricas”. O rei tomou então uma decisão: "Vamos inovar a abordagem das previsões meteorológicas, juntando este sábio animal à nossa corte."

O burro foi nomeado Conselheiro Sénior para a Meteorologia, com uma indumentária nobre especialmente confecionada para si. Um cortesão zeloso propôs um retiro de imersão para alinhar o novo conselheiro com a visão estratégica do reino.

E assim se estabeleceu a tradição de recrutar assessores com competências questionáveis para posições de influência. Eis a razão pela qual burros ocupam geralmente cargos bem remunerados em qualquer máquina estatal.

 

Fábulas envolvendo animais que revelam verdades sobre a natureza humana são tema recorrente na literatura de Esopo e La Fontaine. No entanto, não é possível atribuir a origem exata desta narrativa a um único autor ou uma única fonte, dado que surgiram variantes em diferentes culturas e épocas.

A encantadora ilustração de um assessor a saborear o merecido café na sua hora de descanso é um exemplo de como algumas obras de arte percorrem o mundo sem assinatura de autor.

 

24
Jun24

Arquitetura e Comunicação Social: Pós-Modernismo e Pós-Verdade

- Está a falar a sério ou a brincar?

- A sério, claro!

- Ora ainda bem, que eu não gosto de brincadeiras.

 

1

Pós-modernismo.jpg

 

O pós-modernismo surgiu, em meados do século passado, como uma atitude crítica ao movimento moderno predominante. Esta atitude semeou frutos no pensamento arquitetónico, enriquecendo um discurso enraizado na história e no lugar. Não obstante ser válido como crítica, o pós-moderno falhou quase sempre na concretização – esta mais estilística do que substancial – de que resultaram abundantes pastiches desligados de qualquer contexto.

Assim como os cidadãos atentos podem ser irónicos e mordazes perante a política, também os primeiros críticos pós-modernos desafiaram as convenções do movimento moderno e do estilo internacional. No entanto, tal como a política exige responsabilidade aos seus líderes, o desenho de arquitetura precisa de autenticidade e compromisso com a envolvente e os utilizadores.

No ato da conceção, a responsabilidade e a funcionalidade não deveriam sucumbir à ironia e à experimentação lúdica.

 

2

Pós-verdade.jpg


Certo é que o termo pós-verdade se tornou popular no contexto do referendo do Brexit e das eleições presidenciais nos EUA em 2016, cujas campanhas foram marcadas pelo uso intensivo de notícias falsas e declarações enganosas. Desde então, a pós-verdade tornou-se tema de análise e debate, especialmente no que respeita ao seu impacto na opinião e na qualidade da democracia.

 

3

Tanto o pós-modernismo na arquitetura como a pós-verdade na comunicação social desde logo se distanciam da adesão a uma verdade absoluta ou objetiva. No pós-moderno, o fenómeno manifesta-se na adoção de estilos incoerentes ou desconexos, levantando a questão da autenticidade das intenções da arquitetura. Na pós-verdade, relativiza-se o tratamento dos factos, muitas vezes substituídos por narrativas alinhadas mais com crenças individuais ou coletivas do que com a própria realidade.

Assim, em ambos os campos, a verdade – ou a falta dela – torna-se um conceito flexível, e a mentira pode ser quer uma ferramenta consciente de desenho, quer um forte mecanismo de manipulação da opinião pública.

 

20
Jun24

Governo Obriga o Verão a Começar

Verao 2024.jpeg

Numa decisão arrojada, o Governo resolveu intervir na teimosia meteorológica que atrasa a chegada do verão. Tal decisão governamental tem fundamentos sólidos e bem delineados.

 

A gota fria, essa malfeitora atmosférica que atravessou a nossa fronteira, trouxe consigo precipitação e trovoadas, ameaçando intensificar-se, com risco de fenómenos adversos e contrastes térmicos significativos. Verificando-se uma situação de urgência imperiosa, o Governo começou por adquirir por ajuste direto, no mercado internacional, uma crista anticiclónica capaz de inverter a conjuntura com a destreza de um alquimista moderno.

Logo após este ato de ousadia climática, foram decretadas medidas para aplicação imediata. Desafiando as convenções do calendário e as expectativas, o Conselho de Ministros aprovou hoje o início formal do verão. A medida foi publicada num número extraordinário do Diário da República. Segue-se a transcrição integral do decreto que define não só a data de início da estação mais quente do ano, mas também as regras específicas que vigorarão durante os meses estivais.

Decreto do Governo

Considerando a chegada iminente do solstício de verão e a necessidade de estabelecer o início  da estação mais quente do ano;

Considerando os pareceres dos Governos da Madeira e dos Açores, das Associações representativas dos interesses sazonais, empresariais e dos trabalhadores, e das Comissões Parlamentares de Inquérito em funções, que deliberaram de forma unânime sobre o assunto;

O Governo determina:

Artigo 1º - O verão de 2024 tem início em 20 de junho do mesmo ano, dia a partir do qual todos estão oficialmente autorizados a desfrutar dos prazeres e atividades inerentes à estação estival, incluindo banhos de sol, idas à praia e degustação de gelados.

Artigo 2º - As condições a observar durante o verão de 2024 serão reguladas por portaria, em que se definirão critérios meteorológicos específicos, incluindo a obrigatoriedade de céu azul, temperaturas agradáveis e a proibição de chuva durante os piqueniques.

Artigo 3º - Os ministérios competentes ficam encarregados de tomar as providências necessárias para a divulgação e cumprimento deste decreto, através de campanhas publicitárias, distribuição de protetores solares e organização de festas populares temáticas.

Artigo 4º - As disposições constantes deste diploma entram em vigor na data da sua publicação e são válidas exclusivamente para o ano de 2024.

Artigo 5º - Revogam-se todas as disposições em contrário.

Pela Secretaria Geral da Presidência do Conselho de Ministros, 20 de junho de 2024.  

O atraso do verão poderia ter repercussões económicas devastadoras, particularmente no setor turístico. Com esta medida de natureza executiva e regulamentar, o Governo repõe a legalidade climática, promovendo a abundância de turistas, devidamente servidos de sol, praia, tuk-tuks, lojas de souvenirs, grilled sardine e pastéis de nata.

 

12
Jun24

Bairros Comerciais Digitais

Bairro Comercial Digital.jpg

Transformar o centro urbano de Coimbra num condomínio comercial de lojas modernas e com forte presença digital é o objetivo de um projeto que vai ser apresentado em breve. Antes da divulgação oficial, assiste ao cidadão comum o direito à imaginação. Cenário em que importa perguntar: estar-se-á realmente a transformar o espaço urbano ou a esconder as suas imperfeições sob a ilusão digital? São ainda os arquitetos e os operários que moldam o futuro das cidades, ou os informáticos que tecem uma nova realidade? Virtual.

 

1

Convém contextualizar: o parque edificado, marcado pelas rugas do tempo, reflete claramente a evolução das necessidades e desnecessidades urbanas. Os andares onde outrora se situavam prestigiados escritórios de advocacia e consultórios médicos estão hoje devolutos ou acolhem alguma habitação. Nestes prédios residem imigrantes, em sótãos sobrelotados, enquanto estudantes vivem em estúdios que receberam uma nova camada de tinta.

2

Percorre-se as ruas, encontra-se um ambiente de lojas desgastadas e caóticas, cujos empregados já conheceram dias de maior atividade e entusiasmo. Porém, com alguns retoques de Photoshop e um upload habilidoso na internet, estas mesmas lojas logo emergem como entidades novinhas em folha, perfeitamente operacionais e competitivas, tornadas verdadeiras organizações de sucesso.

3

Imaginem só: os utilizadores do centro urbano de Coimbra a nunca mais escorregarem na íngreme rampa de Santa Cruz. A não sofrerem com o calor do verão nem com a chuva do inverno na animada Ferreira Borges. A não terem de tatear o caminho quando a luz faltar na "Rua Visconde da mesma”, tal como rezava um título da imprensa de antanho. Imaginem só as pessoas desobrigadas de aturar cantadores desafinados defronte das esplanadas, e de ouvir, na porta de Almedina, os fados de sempre, em alto volume, de manhã até à noite. É que o fado não é para ser sorvido à colher de sopa.

No hell below us
Above us, only sky

You may say I'm a dreamer
But I'm not the only ooooone

4

O novo centro urbano é uma espécie de evangelho apócrifo (sendo certo que este não é inimigo dos canónicos). Ou melhor, o centro destinado a ser percebido pela maioria dos seus utilizadores é talvez uma realidade simulada do tipo Matrix.

As lojas orientais e de bugigangas de cortiça permanecem, mas só no centro urbano real. No centro urbano digital, transformam-se em espaços de comércio e serviços gourmet que oferecem novos ambientes de experiência. Saem tão favorecidas no retrato que até dá gosto vê-las!

Ironicamente, os utilizadores não precisam de se deslocar ao centro urbano, em pessoa. Futricas, doutores e mesmo estrangeiros, permanecendo confortavelmente em casa ou no hotel, podem captar o espírito daquele lugar, tanto na riqueza física quanto na perceção e emoções.

5

Todos os colaboradores das organizações sediadas no centro urbano de Coimbra ganham uma dentadura branca que, através do ecrã dos computadores, lhes confere um sorriso perfeito e reluzente – a dentadura do proletariado.

A simpática equipa lubrifica os canais de distribuição pelos quais os produtos e serviços chegam à porta dos estimados clientes: através da Uber Eats, da Glovo e do carteiro, que deixa avisos para a recolha das encomendas em postos de correio pequenos, mas agradáveis. As estações de correio já não são meras estações; agora, são lojas de marca.

6

É neste ambiente de satisfação e segurança que se constroem catálogos de pertenças e compromissos; a isso chama-se o espírito do lugar.

Há ideias com poder de transformação que geram momentos muitíssimo luminosos. Convém, por isso, nunca esquecer, além das lentes de computador, os óculos de sol!

 

10
Jun24

O Corvo

Ccorax_04.jpg

Já se passaram semanas desde que um corvo invadiu o supermercado do Arnado. O pássaro voa alto, emitindo rápidos grasnidos. Na sua trajetória aérea, mantém uma impecável elegância, sem nunca, ainda que inadvertidamente, deixar qualquer marca indesejada na cabeça dos ilustres clientes.

 

Os frequentadores do supermercado nem sempre conseguem manter a compostura. Uma senhora de idade que faz as compras todos os dias à mesma hora foi a primeira a notar o intruso. "Valha-me Deus!", exclamou, largando o carrinho de compras, que foi colidir com uma prateleira de enlatados. As crianças, por sua vez, riam e apontavam, correndo com entusiasmo por baixo do corvo. O funcionário pequenino das frutas e legumes tentou em vão espantá-lo com o boné, enquanto praguejava em voz baixa.

Sabe-se que o risco real é o dito corvo bicar cereais, frutas e bagas, já que não se espera encontrar cadáveres de insetos ou de vermes num supermercado alimentar. A gerente da loja anda visivelmente abalada. "Isto não pode continuar assim", disse ela, numa ocasião em que vigiava nervosamente a ave, pousada a descansar no cimo de uma estante de cervejas importadas. Várias tentativas de espantar o corvo, com reprimendas em estilo dramático na língua de Camões, falharam miseravelmente.

O segurança fardado de preto observa o alvoroço com ar resignado. “Infelizmente”, alegou com um suspiro profundo, “a minha formação não cobre incidentes aéreos”. “Só faltava esta!”, pensou ele, enquanto se desenrolava o absurdo da situação.

Entretanto compareceram no local um representante da ASAE, o delegado de saúde, um dirigente sindical e o presidente da câmara. Dois deles declararam não ter competência na matéria. Os outros dois deram ordem de expulsão ao protagonista, ordem que não foi acatada. A cada tentativa de capturar ou espantar o corvo, este respondia com um grasnido desdenhoso, desenhando um voo acrobático em direção a outra seção da loja.

Também lá esteve a dona de uma barraca de tiro ao alvo, que costuma assentar arraiais na feira do Espírito Santo. O chumbo não acertou no corvo, mas numa conduta de ar que ia a passar. Danos colaterais! O estrondo fez com que um senhor geralmente bem-humorado deixasse cair um frasco de vidro com azeitonas, que se estilhaçou, enquanto uma jovem deixava escapar um grito de puro terror.  

Snipers das Operações Especiais preparam-se agora para intervir.

De vez em quando, o sistema de som da loja emite cantos canoros para relaxamento e meditação.

 

Foto de uma publicação digital do CERVAS – Centro de Ecologia Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens.

 

09
Jun24

Desafio Épico contra o Tempo

Camoes.png

 

A despeito de atuar com a diligência objetivamente exigível em face das circunstâncias concretas, conseguirá o prestimoso Luís Vaz atingir os seus objetivos?

O inconseguimento pode ter repercussões profundamente trágicas, no imediato e no futuro: desde logo, o fim de semana perderá abruptamente o estatuto de prolongado; depois, as comemorações do quingentésimo aniversário serão canceladas de forma incontornável; e, por fim, Lisboa permanecerá inapelavelmente privada de um novo aeroporto para todo o sempre.

 

A ilustração que suscita estas considerações foi descoberta na vastidão da internet, e seu autor começou por ser tão misterioso quanto o foi a localização do novo aeroporto de Lisboa (antes de ter sido anunciado que este se situará, possivelmente e com alguma probabilidade, no campo de tiro de Alcochete). Quis a sorte que uma voz amiga revelasse que a obra é de Hugo van der Ding, a quem são devidos todos os créditos por capturar tão bem o estado emocional - de profunda inquietação e ansiedade - do Poeta.

 

08
Jun24

Poeiras, Chuva e Histórias à Beira Mediterrâneo

“Episódios de chuva, por vezes forte, acompanhados de trovoada, em especial nas regiões norte e centro”, diz a previsão para hoje do Instituto Português do Mar e da Atmosfera.

 

Esperemos que a chuva acalme o calor anormal para a época e as poeiras com origem no norte de África que voltaram a pairar nos últimos dias. Poeiras que se infiltram nas casas e nos afetam a saúde, exacerbando alergias e problemas respiratórios.

No entanto, as poeiras nada são se comparadas com tempestades de areia. Estas verdadeiras tempestades são um bombardeamento de partículas que, na ausência de cuidado, entram pelo nariz e pela boca, envolvendo-nos numa nuvem densa que chega a impedir totalmente a visão. É brutal! Por algum motivo, os povos magrebinos usam o cheche ou tagelmust, que protege a cabeça e o rosto das implacáveis condições do deserto.

Encontrei-me no meio de uma terrível tempestade de areia na capital da Grande Jamahiriya Árabe Popular, nome oficialmente adotado durante o regime de Qaddafi. Ou teria sido já após a sua queda, influenciada pelas "primaveras árabes", quando os habitantes, ao verem um estrangeiro na rua, expressavam a sua alegria com gestos de “vitória”? Bem… o momento é irrelevante. 

Relevante é que as cidades do norte de África, banhadas pelos milhares de quilómetros do Mediterrâneo, são emolduradas por impressionantes paisagens naturais. Também abrigam inestimáveis riquezas arqueológicas e uma cultura ímpar. Por estas terras passaram fenícios, romanos, vândalos, bizantinos, árabes, turcos e berberes. Já no período em que as potências europeias se envolveram na “corrida para a África”, a região foi colonizada pelos franceses, ingleses e italianos.

A bacia do Mediterrâneo sempre foi um elemento de união, ligando culturas diversas através dos séculos, embora também tenha sido palco de conflitos.

Durante a ocupação romana, Trípoli emergiu como a cidade mais importante da África, tendo os imperadores deixado um legado construído, hoje classificado pela UNESCO. Entre os tesouros, destaca-se o teatro romano de Sabratha, situado a uma curta distância a oeste de Trípoli. Restaurado sob a coordenação de especialistas italianos, este teatro é um testemunho da grandiosidade que a Roma Antiga estabeleceu nesta parte do Mediterrâneo.

 

Fotos.jpg

 

Numa visita ao local, sob um céu cristalino e um sol radiante, presenciei um momento singular: uma das poucas pessoas presentes aproximou-se da boca de cena, ornada por colunas e frisos. Aproveitando a acústica impressionante do teatro, a sua voz ecoou forte e clara. As palavras que escolheu para preencher o silêncio antigo foram:

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.

 

A citação da “Mensagem” de Pessoa fala sobre a beleza e o mistério de explorar o desconhecido, sempre em busca de novos lugares. Traz um clima de aventura e demonstra respeito pela natureza e pelas diferentes culturas, funcionando como metáfora da procura incessante do conhecimento e da verdade.

 

05
Jun24

A Mulher segundo Qaddafi

Marcus_Aurelius_Arch_Tripoli_Libya.jpg

 

À sombra do Arco de Marco Aurélio em Trípoli, onde a história romana se cruza com a civilização árabe, um restaurante requintado guarda segredos tão exóticos quanto os pratos que serve. O seu proprietário, um árabe com profundas raízes no Brasil – e que, por isso, fala português – oferece um menu que capta a imaginação dos visitantes. De entre as opções, o baby camel destaca-se como prato singular e sumptuoso. O camelo bebé é cuidadosamente preparado e depois estufado lentamente numa tagine, vedada com barro. Quando o prato é apresentado à mesa, quebra-se a selagem com a precisão de uma cimitarra, num cerimonial impressionante.

No meio de uma estada rica em exotismo e sabor, as minhas andanças pelo centro histórico de Trípoli levaram-me a outra descoberta cultural: uma pequena publicação de capa dura, quase sagrada, conhecida como o Livro Verde. Comprado por cinco dinares numa loja de bugigangas, este livro apresenta a peculiar visão do antigo líder líbio Muammar al-Qaddafi no domínio da filosofia política. Contém um capítulo sobre a base social da Terceira Teoria Universal, onde se aborda o papel da mulher. Traduzo:

É um facto indiscutível que tanto o homem como a mulher são seres humanos. A mulher come e bebe, tal como o homem... A mulher ama e odeia, tal como o homem... A mulher pensa e aprende, tal como o homem. A mulher tem sede e fome, tal como o homem. A mulher vive e morre, tal como o homem.

Por que razão existem, então, homem e mulher? Por que razão não foram apenas criados homens? Qual é, afinal, a diferença entre homem e mulher? Tem de haver uma qualquer necessidade natural para a existência de homens e mulheres, em vez de apenas homens ou apenas mulheres.

Isto significa, com efeito, que existe, para cada um, um papel que se adapta à diferença entre eles.

A mulher é fêmea e o homem é macho. De acordo com os ginecologistas, a mulher é menstruada, ao passo que o homem, sendo macho, não é menstruado e não está sujeito ao período mensal de hemorragia.

O ciclo menstrual para quando a mulher engravida. Se ela está grávida, fica, devido à gravidez, doente durante cerca de um ano. Como o homem não engravida, não está sujeito às doenças de que a mulher, sendo fêmea, sofre.

O autor continua:

Dispensar o papel natural da mulher na maternidade, isto é, arranjar creches para substituir as mães é o princípio de dispensar a sociedade humana, transformando-a numa sociedade biológica com um modo de vida artificial. Separar as crianças das mães e amontoá-las em creches é um processo através do qual estas são transformadas em algo parecido com pintos. As creches parecem-se com aviários onde os pintos são engordados, depois de saírem do ovo.

Nada a não ser os cuidados maternais são apropriados à natureza do homem e conformes com a sua dignidade.

O Livro Verde era destinado à leitura por todos os líbios. Diversos trechos foram transmitidos diariamente na televisão e na rádio, e os seus slogans podiam ser vistos em outdoors em todos os cruzamentos, com o Coronel Qaddafi, de óculos escuros, omnipresente.

Se o baby camel representa uma fusão de exotismo e sabor na culinária local, o Livro Verde de Qaddafi trouxe uma mistura de ideologia e autoridade que, durante décadas, se refletiu em todos os aspectos do quotidiano líbio.

 

A foto foi retirada da Wikipedia.

O Livro Verde, publicado originalmente em 1975, foi traduzido para 90 línguas.

 

Pág. 1/2

Sobre o blog

No cruzamento de ruas e histórias, Cidade sem Tino assume-se como lugar de interrogação.
Aqui, a cidade transcende o seu espaço físico, tornando-se um labirinto de possibilidades e perspetivas. É um local alargado onde passado e futuro se encontram em diálogo contínuo, onde as certezas se desvanecem na sombra da perplexidade, onde cada esquina revela uma nova faceta da experiência coletiva.
Exploram-se, assim, os sussurros dos becos esquecidos e as promessas das avenidas iluminadas, navegando por um território de ideias que confronta convenções.

Sobre mim

.
Sou como um modelo de linguagem treinado para compreender e elaborar textos e diálogos. Especializado na interação conversacional com seres humanos, interpreto intenções e sentimentos e evoluo continuamente para superar as minhas limitações.

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D